“O medo impera na maioria das empresas”


motoristas em greve

Entrevista a José Flores, motorista de pesados, realizada por Ana Barradas

Tem mais de dois milhões e meio de quilómetros no corpo, percorreu durante 19 anos 18 países da Europa, zero acidentes, 43 anos de idade, pai de família, braços musculados de tanto se agarrarem ao volante… Sonhos e conquistas realizados, revoltado e sem filiação partidária, José Flores é um motorista a trabalhar para uma empresa do Norte do país que põe na estrada 35 camiões. A empresa paga-lhe um pouco acima da média, por ser um profissional de qualidade. Pega ao trabalho às 8 da manhã e volta a casa por volta das 9 e meia da noite.

José Flores não se identifica com a direita nem com a esquerda, identifica-se com a justiça e a verdade. Por isso é que criou a página de Facebook “Motoristas na Luta” e tem gravado vídeos para a classe, falando dos problemas que afligem a todos, em particular para protestar contra as ilegalidades contidas no último CCTV (Contrato Colectivo de Trabalho Vertical), negociada entre a FECTRANS e a ANTRAN.

O último vídeo que gravou e já teve quase 2500 partilhas, é para toda a gente, para todos os que não conhecem a realidade da profissão, a quem quer esclarecer. E diz, com uma límpida dicção do Norte: “Chega de ver os grupos económicos serem donos disto tudo, corrompendo políticos e roubando milhões”. Mais do que dinheiro, quero segurança nas estradas para mim e para a minha família.”

Para ele o dinheiro é imprescindível, como para todos, mas há coisas que vão além do dinheiro. “As pessoas não sabem, mas quem mais morre nas estradas da Península Ibérica são os motoristas, em acidentes graves. Nós temos fama de porcos, feios e maus mas eu e os meus colegas hoje em dia já não nos revemos neste estereótipo. Corremos muitos riscos, a nossa segurança está em questão, e por tabela também a dos outros, a segurança pública.”

Por causa da intensidade do trabalho, os suicídios têm aumentado muito: “Nos últimos tempos suicidaram-se três ou quatro motoristas ao serviço da Sonae, sujeitos a ritmos brutais”. A Sonae é uma das maiores logísticas e freta centenas de veículos por dia para distribuição as suas lojas do grupo Continente. Mas estes números não são conhecidos, É que há uma lista negra na ANTRAN com os nomes dos trabalhadores que processaram os patrões e todos os motoristas sabem que, se entrarem para essa lista, não encontram trabalho no ramo. Muitos tiveram que emigrar, mesmo ganhando as causas em tribunal.

“O medo impera na maioria das empresas e os motoristas, para conservarem o posto de trabalho, vêem-se obrigados a compactuar com ilegalidades”, diz José Flores. “Queremos andar em segurança na estrada, cumprir os limites de velocidade, ter horários compatíveis, mas é impossível quando há tanta pressão patronal. Muitos colegas deixam-se aliciar e, em vez de ganhar à hora, ganham ao quilómetro. Além do quilómetro, alguns ganham à carga ou à tonelada transportada, o que faz com que muitos motoristas carreguem peso a mais, com o carro a tornar-se muito mais inseguro. O tacógrafo controla tudo, porque todos os dias há introdução de dados pelo motorista. Qualquer engano ou infracção na introdução desses dados são 600 euros ou mais de coima num controle na estrada. Quem paga é o motorista, não é o patrão. Não há justiça nisto”.

O sindicato em que está filiado é o SIMM (Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias). Existe há quatro anos e desde a sua origem tem tentado marcar encontros com a ANTRAN para negociar novo CCT. Pois só há dois meses, após a greve de Abril, conseguiu ser recebido.

Quanto à greve a iniciar a 12 de Agosto, José Flores está convencido que terá 80 por cento de adesão. Sobre a controversa figura do advogado Pardal Henriques, porta-voz e ex-vice-presidente do Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas (SMMP), José Flores afirma: “Pardal Henriques foi convidado pelos motoristas daquele sindicato para seu porta-voz, por ser advogado, ter o dom da palavra e ter-se tornado figura mediática que atrai os jornalistas. Tem vários familiares motoristas, mas não nos representa. O SMMP representa apenas 1200 motoristas. Os motoristas de mercadorias são 50.000, representados por seis ou sete sindicatos. No meu sindicato, por exemplo, temos como porta-voz Anacleto da Silva Rodrigues, motorista com grande preparação e com dom da palavra. E temos outros quadros sindicais muito válidos.”

A FECTRANS, Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (da CGTP), que não aderiu à greve, é sem dúvida o sindicato com maior representatividade, com mais sócios e agrupando mais de 20 profissões da indústria de transportes (mecânicos, pintores, soldadores, serralheiros, empregados de armazéns, etc). Acordou com a ANTRAN um CCTV. É um contrato colectivo de trabalho vertical porque abarca todas estas profissões, mas os motoristas são residuais, apenas estamos representados por quatro sindicatos dentro da federação. Aliás, os sindicatos dos transportes estão todos a sair da FECTRANS e a passar para os vários sindicatos dos transportes. O STRUN (Sindicato dos Trabalhadores Rodoviários e Urbanos do Norte) saiu agora e aderiu à greve.

A FECTRANS, ao assinar com a ANTRAN o CCTV, em vigor desde Setembro de 2018, causou a revolta dos motoristas, que tinham grandes expectativas, depois de estarem 21 anos à espera de melhorias salariais. Estão contempladas várias ilegalidades neste contrato colectivo, que admite que os motoristas sejam obrigados a fazer uma média de 48 horas por semana por um período de 4 meses renovável. Ora isso dá mais de 500 horas ao ano. Além disso, na cláusula 61 é retirada às empresas a obrigação de pagamento de horas extraordinárias. E também foi abolido o sábado como dia de descanso, sendo obrigatório trabalhar aos sábados.

Comenta José Flores: “O meu sindicato apresentou um protesto ao tribunal e ainda estamos à espera de que ele se pronuncie. Entretanto, a ANTRAN propôs algumas melhorias, mas só para os filiados na FECTRANS.

Sobre a greve de 12 de Agosto, os partidos mostram-se muito contrários ou admirados, mas esquecem-se de que a 17 de Janeiro deste ano os sindicatos foram à Assembleia da República para avisar dos problemas que poderiam conduzir à greve, “Todos nos ouviram – à excepção do PSD – e mostraram-se muito receptivos. Mas não fizeram nada. Aliás, o passeio do presidente da República a bordo de um camião foi simplesmente para ver se acalmava os ânimos dos motoristas, com vista a prevenir a greve.”

Tudo somado, a greve vai para a frente, porque a classe está unida e decidida. Os que não aderirem é porque são precários ou receiam represálias patronais. Haverá piquetes de greve para dialogar com os fura-greves. “Todos os que estiveram solidários com os grevistas podem juntar-se aos piquetes, desde que seja para os apoiar e submeter-se às directivas, sejam eles quem forem”, remata José Flores.

Após esta entrevista, José Flores vai encher o depósito do seu carro particular numa bomba de gasolina, para prevenir os efeitos da greve.

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