A transfobia “comunista”


Bombardeie o Comitê Central

A transfobia “de esquerda” é o “homossexualidade é degeneração burguesa” do nosso tempo.

De nada adianta nos chocarmos com a homofobia na história do movimento comunista, e pensarmos: “nossa, como puderam acreditar nisso?”, se não nos indignamos com a transfobia que existe atualmente em nosso meio, com ares de opinião “respeitável” como qualquer outra. Se nos recusamos a questionar com veemência as posições anti-trans em nossas organizações, porque elas vem de um camarada, de um dirigente, etc., não temos moral nenhuma para nos indignar com o nosso passado. Estamos repetindo o erro, partilhamos a conciliação com a opressão com os que vieram antes de nós.
No que consiste a transfobia “de esquerda”, que cresce junto da nova onda anti-trans mundial? É uma transfobia que apela para argumentos, preocupações e sensibilidades típicas da esquerda. Ela compartilha alguns argumentos com a onda anti-trans mundial, geralmente reacionária e de extrema-direita. Em outras ocasiões cria suas próprias nuances e pautas, suas próprias tendências de pensamento anti-trans.
Essa transfobia “de esquerda” se centra principalmente em argumentos “feministas” (defesa das mulheres “de verdade” contra a ameaça das mulheres trans; mas a militância trans em geral, os homens trans e as pessoas trans não-binárias também são alvo) e é encabeçada geralmente pela esquerda reformista: social-democratas, liberais de esquerda, “nacionalistas”, “progressistas” genéricos, etc. 
Esse texto, no entanto, é endereçado àqueles que, dentro desse grupo que assume posições anti-trans a partir de sensibilidades “de esquerda”, integram o campo comunista. 
Algumas destas pessoas são pseudo-comunistas. Assumem posições anti-trans porque já corrompem nosso campo com posições pseudo-comunistas de longa data. Outros são comunistas honestos que caem na armadilha das posições anti-trans por uma série de motivos. Tanto num caso como no outro, não se pode deixar de dizer que as posições anti-trans jamais podem ser consideradas comunistas. É bom que os comunistas honestos que ainda persistem nelas percebam isso e se apressem em abandoná-las.
Este texto portanto vai focar no debate comunista sobre a questão trans. Também tratará do debate mais generalizado sobre a questão trans porque, como dito, a transfobia “de esquerda” e “comunista” partilha argumentos e preocupações com a onda anti-trans mundial de extrema-direita. Este texto buscará demonstrar que, a partir do momento em que nos colocamos na posição comunista, marxista e leninista, sobre a centralidade da classe, da luta proletária contra a burguesia e da luta revolucionária contra o reformismo, rejeitando qualquer posição alienígena a estes princípios e o que decorre deles, não deveria sobrar espaço nenhum para as posições anti-trans.
Me desculpo de antemão pela necessidade que julguei de entrar nos temas sensacionalistas da questão trans no debate público atual: banheiros, prisões, crianças e escolas, notícias falsas, etc. Ter que se enlamear na realidade virtual criada pela propaganda de extrema-direita para tentar explicar para comunistas a legitimidade da luta por condições de vida de uma parcela da população oprimida, explorada e difamada já é por si só uma derrota. É como se a realidade da opressão pudesse ser resumida a uma série de temas sensacionalistas. Corro o risco de dar status de legitimidade para posições que não deveriam a ter, como se fosse um mero debate.
Este texto não é essencial para o conhecimento da questão trans. Todas as informações apresentadas aqui estavam amplamente disponíveis ao acesso de qualquer um. Faço aqui apenas um apanhado para tentar contribuir ao combate e isolamento das posições anti-trans no meio que conseguir alcançar com esse texto.

O “DIRECIONAMENTO BURGUÊS” DA LUTA TRANS

Alguns “de esquerda” assumem posições anti-trans porque julgam que a questão trans seria “hegemônica”, já que veem ela ser tratada positivamente por veículos de mídia burguesa. Quem pensa assim, geralmente pensa o mesmo sobre a questão LGBT como um todo.
A realidade é que é a posição anti-trans e anti-LGBT continua sendo hegemônica, em acordo com a ideologia dominante e seus aparelhos ideológicos. O que causa a confusão na percepção dos anti-trans é a nova onda de extrema-direita mundial, que bagunçou a nossa percepção do que é “hegemônico”. Pensemos no caso brasileiro: Bolsonaro se elegeu, em parte, na onda das fake news das novas mídias sociais, que se compartilham massivamente de forma aparentemente “orgânica” (e nós, comunistas e quem investiga o tema sabemos que essa movimentação tem método e financiamento), com as pessoas sentindo que estavam propagando a ideologia de alguém “anti-sistema”. A nova onda anti-trans oriunda dos Estados Unidos e da Inglaterra, que chega no Brasil e em Portugal se alimenta desse tipo de lógica, com as pessoas compartilhando notícias que elas juram ser um grande achado, algo que elas leram porque fazem parte de um grupo de pessoas que “questiona a grande mídia”, sendo que é um movimento de ideias reacionário completamente alinhado com a instituição da família e seus desdobramentos ideológicos.
Temos que estar atentos a essas novas particularidades da comunicação: é claro que a mídia burguesa, nos tempos atuais, passou a se colocar como “pró-trans”, da mesma forma que se coloca como “pró-LGBT”, e até “pró-pessoas negras”, “anti-racista”, buscando engolir toda a variedade de lutas sociais. Isso é porque as mídias hegemônicas entenderam que existe uma divisão de classe dentro de todo movimento anti-opressão e que ela pode ser explorada. Podem adotar as novas modas se pintando de “pró-minorias” e não estarão defendendo nada que vá além de seus interesses como mídias do capital, porque percebem, ainda que instintivamente, que podem impulsionar as figuras burguesas e pequeno-burguesas dentro desses movimentos, sem cair em risco de impulsionar a luta das suas frações de classe proletárias. A mesma mídia, cinicamente, dá espaço para as posições anti-trans mais fascistas como se elas fossem apenas “mais uma posição” no “mercado de ideias”, uma “opinião”, “válida” como qualquer outra. O saldo é que as posições anti-trans ficam completamente impulsionadas, enquanto a posição pró-trans é apenas um adorno estético “progressista”. Tudo vai se alinhando: o adorno estético da questão trans não dá nenhum benefício às pessoas trans, apenas às mídias do capital, e ainda por cima serve de instrumento para desmoralizar a luta trans frente aos que constroem narrativas supostamente “anti-hegemônicas”, nas quais a questão trans é dominante porque “está na mídia”.
Na prática, é inaceitável que se coloque como hegemônico o movimento trans. As pessoas trans, principalmente mulheres trans e travestis, continuam em uma posição social degradante, oprimida e explorada, e seus direitos básicos são atacados em um procedimento intensificado pela onda fascista. A expulsão familiar e escolar continua sendo uma realidade. A violência policial contra travestis ainda é objeto de espetacularização e justificativas.
É claro que, se a mídia burguesa consegue explorar as divisões de classe dentro da luta LGBT, é porque existe um direcionamento burguês da luta LGBT em geral. Mas isso não é novidade: qualquer militante trans, qualquer militante LGBT da classe trabalhadora, com alguma consciência de classe está ciente desse direcionamento burguês. O que temos que definir concretamente, para não tirar daí conclusões distorcidas, é o que nos referimos por “militância trans” e precisamente por “direcionamento burguês”.
Alguns comunistas repetem a explicação de que a luta LGBT e trans é uma luta interclassista, ou seja, não seria uma luta proletária. Mas isso é óbvio e reflete um problema de fundo: a militância trans se apresenta à sociedade como interclassista, porque todas as lutas contra opressão sofridas por um grupo específico se apresentam assim. É essa a aparência de todas as lutas, o seu caráter dominante inicialmente. A luta negra se apresenta como uma luta de “todas as pessoas negras”, independente de classe, contra o racismo. É só a partir do impulso que suas parcelas mais radicais podem dar que essas lutas apresentam a possibilidade de superar o interclassismo e se constituir como lutas da classe trabalhadora negra, da classe trabalhadora feminina, etc.
O que quer dizer que o caráter interclassista não é culpa das massas oprimidas. É o efeito do capitalismo sob essas lutas. A luta de classes também ocorre dentro delas: os indivíduos burgueses e pequeno-burgueses do movimento LGBT, trans, negro, feminino, etc tomam a dianteira do movimento, se beneficiando desse caráter interclassista, “neutro” (a burguesia sempre se beneficia da neutralidade, do ocultamento da sua posição de classe, no que se beneficia do próprio funcionamento do capital). São agentes da cooptação do movimento para pautas de inclusão e “representatividade” na mídia, no mercado de trabalho, etc. Só quando a classe trabalhadora dentro desses movimentos se organizar, em torno de suas particularidades mas enquanto classe trabalhadora, ela poderá chutar suas “lideranças” burguesas e pequeno-burguesas.
Quando falamos em “questão trans”, em “militância trans”, alguns comunistas respondem que são formulações abstratas, em que não está claro de quais classes estamos falando. Mas é óbvio: quando quem adere às posições anti-trans busca, a partir do reconhecimento de um direcionamento burguês na questão trans, uma extrapolação em que a questão trans como um todo seria “burguesa”, eu sou obrigado a defender aspectos do movimento trans em geral. Disso não decorre que eu possa ser acusado de interclassismo. O problema é dos anti-trans, que não sabem diferenciar o que é a “militância trans” em sentido geral e o caráter de direcionamento burguês existente atualmente em todas as lutas sociais, incluindo as que o senso comum confere legitimidade “proletária”, como as lutas sindicais.
Vou fazer uma comparação com a questão de gênero em geral: em “Direitos da Mulher não é Política?“, texto de 2005, Francisco Martins Rodrigues diz:
“A luta contra a opressão e discriminação da mulher é transversal a todas as classes, porque todas a mulheres, em todas as classes, são atingidas, de uma ou de outra maneira, por essa opressão masculina. A luta pela emancipação feminina só é conduzida por movimentos feministas burgueses e só se concentra em metas de interesse para as mulheres da burguesia porque ainda não surgiu no seio do proletariado uma corrente feminista revolucionária.”

Se algum comunista critica as pautas das mulheres que são transversais a todas as classes como pautas inerentemente infectadas pelo direcionamento burguês, eu vou ser obrigado a defender essas pautas transversais. Esse comunista do nosso exercício hipotético poderia então me acusar de “interclassista”. Mas seria falacioso. Eu não estaria incorrendo em interclassismo, eu estaria apenas sendo contrário à posição excessiva desse comunista, que estaria colocando as pautas femininas, digamos, contra a objetificação, a prostituição, a violência doméstica, pela legalização do aborto, como “burguesas” e dizendo que isso justificaria se posicionar contra elas ou não ingressar nas lutas por estas pautas.
Ou seja, de modo algum o caráter transversal de determinada luta, o caráter de direcionamento burguês (que é temporário, mutável), pode nos fazer esquecer que são lutas contra a opressão. Uma coisa é identificar que o caráter interclassista dessas lutas, que deságua inevitavelmente no seu direcionamento burguês (só esse direcionamento é capaz de se beneficiar do discurso “interclasse”; nós não temos como), incapacita essas lutas para travar o próprio objetivo de luta contra a opressão que declaram. Identificar que, dessa forma, quem ascende é só a burguesia e a pequeno-burguesia do grupo x. Outra coisa é negar o seu caráter de luta contra opressão.
O caráter transversal é apenas a expressão distorcida que as lutas de grupos oprimidos recebem pela realidade capitalista. Eles sofrem a pressão da hegemonia da sociedade burguesa sobre a sua luta, mas isso é o reflexo de uma luta de classes dentro do movimento. O movimento é ao mesmo tempo o reflexo dos anseios reais das frações trabalhadoras, precarizadas, desempregadas e marginalizadas do grupo oprimido que sofrem os efeitos mais pesados da opressão, porque é para aí que o capitalismo direciona de fato essa opressão, entrelaçando-a com a exploração de classe, e a distorção imprimida pelos elementos burgueses e pequeno-burgueses que podem ascender sob a máscara da luta contra opressão, em última instância conciliando com a sociedade burguesa e tirando das frações de classe trabalhadora do movimento a possibilidade de realizar de fato a luta anti-opressão da forma necessária: a forma da luta classista, a unidade na luta da classe trabalhadora do grupo oprimido com o restante da classe trabalhadora, superando seus antagonismos produzidos pelo capitalismo em prol do antagonismo contra a burguesia que reflete seu interesse de classe real.
Isso não significa “falar apenas do que for estritamente de classe”, e parafraseando FMR isso equivale a querer que lésbicas, homossexuais, bissexuais e transexuais façam a sua ‘revolução socialista’ sem passar pela sua ‘revolução democrática’. Precisamos tratar das questões LGBT aparentemente “transversais”, porque elas refletem a necessidade da classe trabalhadora LGBT poder superar o seu estatuto degradante e assim poder se unir à luta do proletariado como um todo, bem como da classe trabalhadora heterossexual superar o seu chauvinismo anti-LGBT, produtor também de parte do seu reformismo (e cooptação fascista). Não ignorar uma opressão que se apresenta na sociedade e demandar que as pessoas trans e LGBT busquem se anular dentro de organizações “de esquerda” ou “comunistas” degradadas pela proliferação de ideologias reacionárias.
Alguns setores do campo comunista que defendem essas posições, no entanto, ao mesmo tempo dizem: “mas eu não sou contra pessoas trans!”. Mas são contra os direitos reivindicados pela população trans, e apresentam como tratamento “classista” da questão, basicamente, querer que as pessoas trans se calem, porque o avanço de suas condições de vida já vai ser fornecido “naturalmente” pela luta proletária geral, ou quem sabe “depois do socialismo”. É por isso que dizer “não sou contra pessoas trans” é um posicionamento abstrato, fácil de dizer por dizer, sem analisar a contradição com a tomada de posições que, na prática, são anti-militância trans, ou estigmatizantes em relação à militância trans por sobrevivência.

FOBIA

Quando usamos os termos “LGBTfobia”, “homofobia”, “transfobia”, não costumamos analisar a percepção desses termos no senso comum. A definição de fobia é um continuum de sentimentos negativos, desde rejeição, aversão, nojo, até o ódio. Mas é um debate extremamente velho, e já se tornou até batida, no senso comum, a asserção de que “não sou homofóbico, porque não tenho medo de homossexuais!”, ligando fobia à definição simplista de “medo”. Muitos homofóbicos militantes chegam ao ponto de dizer que não são homofóbicos porque “não sentem aversão a homossexuais”, e estão apenas preocupados com os supostos “perigos” da aceitação de homossexuais na vida pública, com a “destruição da família”, etc. É possível defender a mais completa falta de direitos a pessoas LGBT, que significa na prática a continuação da sua situação de opressão, que é o que dá origem à violência LGBTfóbica, e alegar que isso é “apenas uma posição política, uma opinião”, e não LGBTfobia pois não se trataria de “aversão” ou perseguição ativa.
É por isso que, no debate político sobre a LGBTfobia, sobre as posições anti-LGBT, é necessário rediscutir estas definições. A questão LGBT costuma ser enfocada na chave da fobia pelas suas particularidades históricas: a sexualidade é tida como questão privada. A militância política em torno da homossexualidade, historicamente, se deu na questão do “armário”, da necessidade de pessoas homossexuais viverem escondidas. Muito da militância política se direcionava contra intervenções na vida privada: contra a criminalização da homossexualidade, por exemplo, que foi o início do movimento homossexual na Alemanha.
Depois, algumas questões saem do âmbito privado e se tornam sociais: homossexuais podem “se portar como homossexuais” em público? Homossexuais podem ter cargos públicos? Podem ser professores, por exemplo? Homossexuais podem se casar? Nestas questões, funda-se todo um campo de LGBTfobia focado na “preocupação” com as “repercussões sociais” da apresentação pública de pessoas LGBT: e se um professor LGBT “corromper” meu filho? E se meu filho ver um casal LGBT se beijando em público? Etc, etc.
Devemos ter em mente essa complexa relação entre o individual e o social, entre o privado e o público, quando discutimos “LGBTfobia”. A chave da fobia é, muitas vezes, excessivamente focada no aspecto da intervenção no assunto “privado” da sexualidade: essa intervenção seria feita por indivíduos “fóbicos”, indivíduos com aversão pessoal a lésbicas, gays, bissexuais e/ou transexuais.
Acontece que a preocupação “social” de indivíduos que alegam que não são “fóbicos”, mas que estão preocupados com uma questão ou outra, com “gays se beijando em público”, com a “corrupção da família” e a “corrupção das crianças”, etc, não é menos anti-LGBT e opressiva. É a defesa política da permanência da situação social em que pessoas LGBT são cidadãs de segunda classe, sujeitas a discriminações, exclusões e violências. Pouco importa se o indivíduo em questão não sente aversão pessoal a pessoas LGBT, ou mesmo se “tem amigos LGBT”. Focar unicamente nesses aspectos é uma despolitização da questão.
O que deve ser considerado importante na questão LGBT são as posições políticas. Começa que praticamente não existe posição LGBTfóbica no mundo que se assuma anti-LGBT. Quem espera esse tipo de coisa tem uma visão caricata, cartunesca. Uma visão mais aprofundada do fenômeno da LGBTfobia constata que ela busca se legitimar, se comunicar com preocupações que façam sentido: o bem estar das famílias, das crianças, escolas “sem doutrinação de sexualidade”, etc, etc. Um fascista é capaz de assassinar uma pessoa LGBT na rua e declarar que fez isso para proteger as crianças.
Tendo tratado das questões, digamos, “epistemológicas” que aflingem os “comunistas” anti-trans, toco finalmente nos pontos “polêmicos”, sensacionalistas da questão:

MULHERES TRANS ENCARCERADAS

A questão das mulheres trans nas prisões femininas é bastante trazida pelos “comunistas” anti-trans, e pela “esquerda anti-trans” em geral, em nome das mulheres. Afirmam que a militância trans “quer enfiar homens [sic] em prisões femininas, em nome da identidade”. Ou seja, mulheres trans não são mulheres, são “homens”, e a militância trans estaria defendendo um conceito liberal de identidade em que “se penso que sou mulher, sou mulher”. Logo, a esquerda teria a tarefa de resgatar a “realidade biológica”: mulheres trans são “homens”, e as “mulheres biológicas” das prisões femininas precisam ser defendidas dessa investida contra seus direitos. Vejamos, então, o que tirar destas acusações. 
Para exemplificar, exponho este comentário ilustrativo feito por um “comunista” em uma discussão de internet:
“eu acho que cidadãos maiores e vacinados são livres de fazer o que quiserem com o seu próprio corpo, mas fui educado a conhecer a materialidade do conceito de sexo, não “identidade de gênero”. os sexos, necessários à reprodução da espécie, são dois, masculino e feminino, havendo raros casos de intersexualidade. tudo o mais – a “identidade de gênero” – é idealismo e ideologia. os colonizados pela indústria farmacêutico-médico-cirúrgica capitalista já me têm acusado de “transfóbico” por defender isto. agora defender a reprodução e continuidade da espécie humana é ser machista e patriarcal!… Nem Foucault apresentaria uma perspectiva tão niilista! de resto, penso que algumas pessoas “trans” se vitimizam demasiado. algumas seguem a via da prostituição por doença mental (“fetichismo”) e opção. tenho pena, mas não assim tanta pena.”

Este não é de forma alguma o único pretenso comunista com posições do tipo. Hoje em dia até mesmo uma organização como o KKE (Partido Comunista da Grécia), que tem um debate contra o reformismo em alguns pontos e exerce por isso alguma influência em outros PCs mundialmente, tem posições reacionárias quanto à questão LGBT. Mas exponho este comentário em específico por ele ser ilustrativo de várias questões que temos que discutir. O comentário se inseria numa discussão sobre uma charge. A charge consistia na imagem de uma raposa em frente a um galinheiro, que dizia: “Nasci raposa, mas sinto-me como uma galinha. É a minha nova identidade. Exijo entrar no galinheiro”.
Alguns casos polêmicos recentemente discutidos dentro deste tema são os de Isla Bryson, na escócia, que recebeu condenação pelo estupro de duas mulheres antes de sua transição de gênero e recebeu transferência para uma prisão feminina; e de Karen White, que foi para uma prisão feminina e estuprou mulheres lá dentro.
O discurso despolitizante em torno desses casos, oriundo da extrema-direita e abraçado pela “esquerda anti-trans”, tem o objetivo de passar a ideia de que a militância das pessoas trans busca avançar sua causa com o recurso do identitarismo, do individualismo, do “sentir-se”: “nasci X, mas sinto-me Y, e vocês tem que aceitar”. Dessa forma, utiliza casos gravíssimos de violência para imputar culpa a todas as mulheres trans e fomentar o ódio social contra elas, na ideia de que seriam todas “raposas querendo entrar no galinheiro”, “homens” querendo “entrar em espaços femininos” para estuprar e agredir. Logo, a repressão contra mulheres e pessoas trans em geral em voga atualmente seria justificada. Não é uma lógica muito diferente dos reacionários que pegam um crime que alguma pessoa negra tenha cometido para justificar a violência policial racista, as torturas nas cadeias, etc. 
Na verdade, a militância das pessoas trans se baseia fundamentalmente na realidade social. As mulheres trans são socialmente mulheres, da mesma forma que mulheres cis (“cis”, enquanto termo, significa simplesmente o contrário de “trans”) são também socialmente mulheres, já que “mulher” é uma posição social e ninguém é predestinado a ocupar determinada posição na sociedade por qualquer configuração biológica. A identidade de gênero feminina parte da posição social feminina, não o contrário. A realidade social das mulheres trans, com suas particularidades, é a da exploração e opressão que todo o gênero feminino sofre: objetificação, violência sexual, violência doméstica, ainda com os adendos da realidade LGBT: expulsão familiar e expulsão escolar, agravando a marginalização. Seus setores de trabalho são precarizados e de grande presença LGBT como o telemarketing, ou ainda setores precarizados tipicamente femininos como auxiliar de limpeza, auxiliar de cozinha, serviços de estética.
A corrente “radfem”, corrente “feminista” transfóbica que anda tendo seu “renascimento” atualmente nesse tema, cada vez mais perdendo até mesmo a referência ao feminismo e exacerbando a aliança aberta com a extrema-direita, é incapaz de compreender isso porque não se baseia no materialismo e na realidade social. Ela remete às concepções burguesas de feminismo em que se entende a subordinação das mulheres aos homens não como consequência da pressão mais ampla da exploração do proletariado pela burguesia, mas como tendo origem fundamentalmente numa divisão biológica entre homens e mulheres. 
Sendo assim, mulheres trans e travestis não são analisadas na sua posição social de classe (feminina, explorada, violentada, objetificada e prostituída), mas como “biologicamente homens”. A análise “biológica” tem precedência em relação à análise de classe; uma divisão sexual, biológica entre homens e mulheres seria a causa da opressão. É uma posição francamente anti-marxista.
Essa perspectiva é que orienta a noção de que a militância das pessoas trans se preocupa com a transferência de mulheres trans para prisões femininas, novamente, por causa da “identidade”. Elas “se sentem mulheres”, logo, teriam por isso que ir para prisões femininas. Mas é mentira. Peguemos o exemplo claro e objetivo da realidade brasileira. A realidade das mulheres transexuais e travestis encarceradas em presídios masculinos é de tortura e estupro:
Existem padrões de violação e práticas de tortura que atingem especificamente a população de travestis e mulheres trans nos presídios, diz o coordenador de um estudo sobre população LGBT nos sistema prisional brasileiro. Os relatos são estes:
“Na minha primeira noite na cadeia, fui mandada para uma cela com 12 homens. Fui estuprada aquela noite toda. Depois, ao longo da pena, era comum ser estuprada no banheiro.’ Em um dos estupros, Gabriela contraiu uma infecção grave e precisou fazer uma cirurgia de reparação nos órgãos genitais.”
“Quando cheguei na cadeia, a primeira coisa que os agentes penitenciários fizeram foi mandar eu trocar minhas roupas íntimas femininas por masculinas e cortar meu cabelo’, lembra Gabriela. Quanto à tortura física, a ex-detenta conta que, durante uma rebelião, foi usada como ‘escudo’ pelos detentos e, quando o Grupo de Intervenção Rápida entrou no presídio, foi bolinada com cassetete quando os policiais descobriram que ela era trans.”

Nas prisões masculinas a população LGBT que é em grande parte trans e travesti sofre segregação (os outros presos se recusam a consumir alimentos tocados por elas e a beber no mesmo copo), são submetidas à prostituição e até mesmo a uma divisão do trabalho em que ficam com os trabalhos de limpeza e arrumação das celas
Isso não é “sentir-se”, “identificar-se” com o gênero feminino, é ser. A identidade de gênero é consequência da realidade material. É essa a realidade que a militância trans quer combater ao pautar que mulheres trans e travestis encarceradas possam ir para presídios femininos. Se há casos como os de Isla Bryson e Karen White, há casos como os que acabo de citar. A militância trans obviamente não está contente com os casos de Isla Bryson e Karen White e não tem absolutamente nenhum interesse em defender a violência sexual, já que sofrem essa violência e atuam principalmente contra ela. Se o objetivo é evitar estupros, portanto, é obrigatório admitir que a questão é complexa.
O que fazer, então? Há dezenas de outras opções a tomar antes de deixar-se seduzir pela propaganda da guerra cultural da extrema-direita contra a população trans. Poderíamos falar das alas em presídios para criminosos sexuais (que já existem), e que pessoas condenadas por crimes sexuais não sejam colocadas em presídios femininos que reúnem mulheres encarceradas por outros crimes (o que nos obrigaria a citar Catharine MacKinnon sobre o fato de que “uma boa quantidade de agressão sexual de mulheres por mulheres [cis] ocorre nas prisões femininas, embora a principal ameaça às mulheres prisioneiras continuem a ser os guardas prisionais homens”). Poderíamos falar das alas exclusivas para LGBTs nos presídios, iniciativa que já existe mas que ainda só é realidade em 3% das cadeias brasileiras, por exemplo. (e que foram criadas para proteger LGBTs da violência nos presídios comuns.)
Ou poderíamos ainda admitir que todas estas seriam no máximo medidas paliativas, e que o problema da violência nos presídios é impossível de resolver enquanto persistir o capitalismo, que propaga sistematicamente a extrema miséria e precarização que produz o ciclo de criminalidade, encarceramento, e a violência e tortura nas prisões. Constatação que nos desabona mais ainda de buscar culpa na militância trans por casos de violência nas prisões.
Estima-se que 90% das travestis e mulheres transexuais no brasil estão submetidas à prostituição, isso em decorrência da violência social contra essa população, da expulsão familiar e expulsão escolar, da marginalização e da precariedade dos empregos. É nesse sentido uma das piores situações para a população trans, mas a realidade em outros países não é tão diferente. No entanto para o “comunista” do comentário acima, isso dá “pena, mas não assim tanta pena”, porque “algumas se tratam de doentes mentais” que seguem essa via por “opção”. A transfobia é uma via para a misoginia pura e simples, que vigora em nossos espaços muitas vezes sem contestação nenhuma.
Qual é a “moralidade comunista” e “proletária” de um sujeito que se deleita com a violência sexual, física, psicológica extrema a que estão submetidas massas de mulheres trans prostituídas? O que existe de comunista em olhar para a realidade da prostituição, que é de interesse da burguesia, e atribui-la à “doença mental” e opção das submetidas?
É óbvio que convivemos com esse tipo de lixo no nosso meio pela crise do movimento comunista e falência das organizações de esquerda, que definham sem conseguir inserção nas massas trabalhadoras. Existem setores burgueses e pequeno-burgueses no movimento LGBT, como existem em todos os movimentos de luta contra opressão e no movimento sindical também, mas estes e os reacionários masculinistas pseudo-comunistas são duas faces da mesma moeda. Se não é mentalidade pequeno-burguesa olhar pra populações extremamente precarizadas e atribuir sua situação à doença mental e opção, é o quê?
É um erro grave dizer que “homens” são enviados para celas femininas. Mulheres trans não são “homens”. Todos os dados estatísticos e sociológicos possíveis desmentem a possibilidade de unir numa mesma população os homens e as mulheres trans. Os homens não estão nas estatísticas de prostituição, estupro e agressão misógina onde estão as mulheres trans. O que explica essa situação é a posição marxista de que o lugar social de homens e mulheres é definido pela sociedade de classes, pela propriedade privada e seus desdobramentos, e não a biologia. Certamente características biológicas específicas como a gestação das mulheres tem peso no papel social que se constrói para elas. Mas essa posição social feminina, oprimida e tutelada é passível de superação pela revolução proletária porque é uma questão fundamentalmente de classe e não de biologia.
Se a situação é complexa, podemos no entanto estabelecer de imediato que não é aceitável, como solução, propor ou sucumbir à propaganda mentirosa de que a militância trans fala de mulheres trans nos presídios femininos por questão de “identidade”, porque “a esquerda pós-moderna pensa que dizer-se mulher é ser mulher e que a auto-identificação é capaz de produzir a realidade social” e outras baboseiras que a “esquerda” anti-trans diz por aí. Se a possibilidade de mulheres trans irem para presídios femininos é uma solução paliativa, quem faz militância anti-trans em prol do status quo de mulheres trans nas cadeias masculinas propõe uma solução igualmente paliativa. Com a diferença, no entanto, de que para fazer sua posição passar, precisa pegar casos isolados para propagar a ideia de que “mulheres trans são homens”, de que mulheres trans “representariam risco” tal como homens, pois seriam “homens estupradores em potencial”, ocultando que a situação social geral dessa população é esmagadoramente diferente, que a posição social dessa população não é masculina.
Enquanto isso, por contraste, a militância das pessoas trans se encontra numa situação desesperada por sobrevivência, uma luta desesperada pra não sofrer tortura e estupro numa situação de estarem encarceradas já por terem vindo de uma vida de exclusão e marginalização, uma situação não de casos isolados mas na qual via de regra sofrem violências e estupros se vão para as cadeias masculinas. Uma militância que merece certamente não nossa condenação, mas nosso apoio para que entendam que essa luta só pode ter sucesso se for unida à luta geral da classe trabalhadora, se for tocada pelas pessoas trans trabalhadoras e marginalizadas.
E por falar nisso, é até falacioso imaginar que as frações burguesas e pequeno-burguesas estejam interessadas no destino de mulheres trans e travestis encarceradas… O movimento LGBT pequeno-burguês hegemônico está preocupado com a pauta do casamento, da inclusão na mídia, nos filmes e nas profissões liberais de classe média. Quem toca qualquer movimentação direcionada às mulheres trans e travestis encarceradas já são as frações trabalhadoras e marginalizadas do movimento LGBT. Quando não é o caso, quem se insere nessas lutas são as ONGs do movimento LGBT, que só conseguem realizar seu procedimento tradicional de direcionar tais pautas para a institucionalidade pela omissão dos comunistas nessa área.

A “NEGAÇÃO DA BIOLOGIA”…

Para comentar sobre a acusação de que a pauta trans incorre em uma “negação da biologia”, dou de exemplo esta “notícia”:
“Professor de Biologia demitido após queixas por ter ensinado que o sexo é determinado pelos cromossomas X e Y”
Esta notícia correu por inúmeros portais de notícia. Comento ela por ser um caso típico que expõe o funcionamento da propaganda fascista anti-trans por meio das novas mídias sociais.
A notícia esteve sendo espalhada pelo próprio pastor Johnson Varkey (sim, além de ser professor de biologia, ele é pastor), por meio de vídeos no Youtube, e pelo “First Liberty Institute”, organização de ativismo jurídico que saiu em sua defesa. Só o nome “First Liberty” já indica a ideologia dessa organização, mas seu site oficial explica: é uma organização em defesa da “liberdade religiosa” dos norte-americanos, que estaria sendo atacada pelos “wokes”, e que diz que o “direito fundamental de seguir sua consciência e viver de acordo com suas crenças” foi “estabelecido pelos Pais Fundadores da nossa nação”. Assim, diz o site da organização, ela sai em defesa de gente como uma enfermeira que estaria tendo sua “liberdade religiosa” atacada porque se recusou a prescrever contraceptivos; militares que estariam tendo sua “liberdade religiosa” atacada porque se recusaram a tomar a vacina da COVID-19; entre outras causas fundamentais da liberdade humana.
Segundo o próprio documento sobre o caso, fornecido pelo “First Liberty Institute”, o pastor Johnson Varkey “acredita que Deus criou a humanidade como machos e fêmeas, que o sexo de uma pessoa é ordenado por Deus, que se deve amar e cuidar do corpo que Deus lhe deu, e que não se deve tentar apagar ou alterar seu sexo, especialmente por meio de drogas ou meios cirúrgicos. Como cristão, ele também acredita que Deus ordenou a função sexual para procriação, que os filhos são uma dádiva de Deus e que, na ausência de uma razão convincente, ninguém deve esterilizar-se”.
A única informação concreta que o documento fornece sobre a demissão pelo St. Philip’s College é uma carta em que a universidade menciona ter recebido numerosas reclamações, com relatos de que o pastor teria incorrido em “pregação religiosa, comentários discriminatórios sobre homossexuais e transgêneros, retórica anti-aborto e gracejos misóginos” (“religious preaching, discriminatory comments about homosexuals and transgender individuals, anti-abortion rhetoric, and misogynistic banter.”). Então, o “First Liberty Institute” mostra slides das aulas do pastor Johnson Varkey com conteúdos básicos de biologia, sobre reprodução humana, e sobre o momento de “início da vida” (“when the zygote begins to divide, not when the baby is born”), provavelmente querendo insinuar que sua demissão se deu, entre outras coisas, por ensinar a “verdade científica” que atesta contra a pauta da discriminalização do aborto. O documento pode ser checado aqui.
Disso, o “First Liberty Institute” interpreta, cinicamente, que o pastor foi demitido por “ensinar biologia”, por “ensinar que o sexo é determinado pelos cromossomos X e Y”. A informação enviesada ou mentirosa é espalhada por 200 portais de notícias e influenciadores fundamentalistas religiosos e/ou de extrema-direita (e pelos anti-trans do nosso campo!) como “Professor de Biologia demitido após queixas por ter ensinado que o sexo é determinado pelos cromossomos X e Y”.
Todos tomam como fato, mesmo com o ar estranho da notícia e a falta de fontes concretas além da alegação. No entanto, no documento, não há nenhum dado que corrobore a informação de que ele teria sido demitido por ensinar qualquer coisa sobre sexo biológico. A alegação da universidade é que ele foi demitido por reclamações sobre sua “pregação religiosa, comentários discriminatórios sobre homossexuais e transgêneros, retórica anti-aborto e gracejos misóginos”. Se estas fontes fossem realmente jornalísticas, teriam que noticiar isso. Mas não o fazem. Naturalmente, o pastor e o instituto podem alegar que essas reclamações são falsas e vieram “só porque o pastor ensinou biologia”, mas então já se trata de alegação contra alegação, e se tornaria um fato completamente diferente que não impulsionaria a mesma “indignação” (por isso eles sentem necessidade de falsificar a notícia, pra causar indignação e compartilhamentos.) 
Por acaso temos algum motivo para duvidar que um pastor envolvido com um instituto fundamentalista religioso e reacionário pode ter feito comentários discriminatórios em sala de aula? De qualquer forma, o fato concreto é esse: ele foi demitido por reclamações, por parte dos alunos, de comentários discriminatórios, homofóbicos, transfóbicos, misóginos e inapropriados. Não houve nenhuma reclamação de alunos sobre o fato de ele ensinar coisa alguma sobre sexo biológico. Os slides fornecidos de suas aulas não foram apontados por aluno nenhum como motivo das reclamações. O documento busca juntar coisas não-relacionadas para falsificar o caso. A notícia é falsa. Utiliza o procedimento tradicional da nova extrema-direita: notícias “chocantes”, com aparência de “por fora da mídia tradicional”, se aproveitam do nosso “choque”, nossa “indignação” instintiva com coisas que parecem “absurdas” e “ultrajantes” – e do nosso celular à mão! – para que nosso sentimento seja impulso de compartilhamento das notícias e alimento para a narrativa dos fascistas. É assim que as novas mídias sociais são seu instrumento.
“A transgeneridade, assim, é frequentemente entendida como se opondo às verdades naturais da biologia, como se pudesse ser mais artificial e menos autêntica que a cisgeneridade. Assumir mesmo difusamente que as identidades transgêneras sejam menos determinadas biologicamente e/ou mais determinadas socialmente que as identidades cisgêneras constitui obviamente um ponto de falha em potencial para o sistema teórico de um discurso, pois se assumimos que gênero seja da esfera da biologia e/ou da construção social, esperaríamos encontrar tanto as identificações transgêneras quanto cisgêneras como igualmente resultados de determinações biológicas e/ou sociais. Cabe, neste aspecto, compreender as razões destas assimetrias ou duplos padrões como resultado de relações de poder.”

(A “ideologia de gênero” sob uma perspectiva transfeminista, um sentido sobre a escolha,
Beatriz Pagliarini Bagagli e Renan Quinalha)

…E A NEGAÇÃO DO GÊNERO

Muitos “comunistas” que expõem sua preocupação com a “negação da biologia” por parte da militância trans estão, na verdade, tentando disfarçar sua real preocupação: a negação do gênero. Chegam ao ponto de manifestar preocupação com a “troca de papéis” de gênero: sem os papéis de gênero não saberemos mais quem é pai, quem é mãe… Assim, estes “comunistas” demonstram como sua transfobia resvala facilmente na homofobia, numa visão de mundo em que casais de dois homens e duas mulheres que adotam uma criança também não devem ser considerados “normais”. É a pura estigmatização do mundo LGBT em defesa da instituição da família.
Querendo passar a ideia de que combatem a negação do sexo biológico, estes “comunistas” deixam transparecer que o problema, para eles, é que se diga que o gênero é uma posição social, ligada à divisão sexual-generificada do trabalho.
Mas isso é ponto básico do feminismo e do marxismo. Os seres humanos são diferentes biologicamente em configuração corporal, órgãos sexuais, capacidade de engravidar. Isso chamamos de sexo biológico. Mas o “ser homem” e o “ser mulher” são posições sociais. Essas posições sociais têm origem em uma divisão sexual do trabalho, de modo que determinada posição na economia é dada à mulher pela sua capacidade de gestação, mas o determinante é a classe, a propriedade privada, a família, de modo que as mulheres não estão condenadas à sua posição social pela sua biologia.
O que existe no “ser homem” e no “ser mulher” que não é produzido pela divisão do trabalho e dos gêneros produzida socialmente? Homens são naturalmente agressivos, dominantes pelo seu corpo? Mulheres são naturalmente submissas? Homens naturalmente gostam de roupa x, trejeito corporal, forma de falar y? Mulheres naturalmente gostam de ocupar as categorias laborais do cuidado, naturalmente são aptas ao trabalho doméstico? O que é ser homem e mulher?
A capacidade de gestação tem implicações sociais na divisão sexual do trabalho. Mas a divisão sexual do trabalho é de tal forma determinada pela classe em primeira instância, como diz o marxismo, e não pela biologia, que os efeitos dessa divisão não deixam de ser sentidos por mulheres cisgêneras que não são capazes de engravidar, e também há o fenômeno de expansão dessa divisão sexual do trabalho de modo que ela não é restrita às pessoas com os corpos que classificamos no sexo “feminino”: as mulheres trans são a prova disso, ao ser uma categoria explorada e oprimida em setores laborais tipicamente femininos, objetificada na pornografia, explorada, oprimida e violentada na prostituição. Isso mesmo sendo pessoas classificadas no sexo “masculino”. A possibilidade disso é explicada pelo feminismo e pelo marxismo no ponto base de que o que define o gênero não é a biologia mas a posição dessas pessoas na divisão do trabalho. 

IDEOLOGIA DA DIFERENÇA SEXUAL

A origem do problema em que se “confunde” um incômodo “comunista” com a suposta negação da biologia, com o real incômodo destes com quem aponta o fato da construção social do gênero, muito provavelmente, são as próprias nuances da distinção sexo/gênero no debate feminista.
É inaceitável que não se reconheça como anti-trans quem faz coro com a extrema-direita nas ideias fantasiosas de que todas as correntes feministas que tratam da construção social do sexo estão “negando a biologia” e “proibindo as pessoas de falar de anatomia humana”.
Devemos esclarecer aos “comunistas” e “radfems” que o seu desconhecimento sobre décadas de teoria feminista não é uma virtude.
“Para Butler, os corpos sexuados nunca existem fora dos significados sociais e a forma como entendemos o gênero molda a forma como entendemos o sexo (1999, 139). Os corpos sexuados não são matéria vazia sobre a qual o género é construído e as categorias de sexo não são escolhidas com base em características objectivas do mundo. Em vez disso, os nossos corpos sexuados são eles próprios construídos discursivamente: são como são, pelo menos numa extensão substancial, devido ao que é atribuído aos corpos sexuados e à forma como são classificados (para a construção discursiva, ver Haslanger 1995, 99). A atribuição de sexo (chamar alguém de feminino ou masculino) é normativa (Butler 1993, 1).[6] Quando o médico chama um recém-nascido de menina ou menino, ele não está fazendo uma afirmação descritiva, mas normativa. (…) Com efeito, a expressão do médico transforma os bebês em meninas ou meninos. Nós, então, nos envolvemos em atividades que fazem parecer que os sexos se dividem naturalmente em dois e que ser mulher ou homem é uma característica objetiva do mundo, em vez de ser uma consequência de certos atos constitutivos (isto é, em vez de ser performativo). . E é isso que Butler quer dizer ao dizer que os corpos físicos nunca existem fora dos significados culturais e sociais, e que o sexo é tão construído socialmente como o gênero. Não se trata de negar que existam corpos físicos. Mas, considera-se que a nossa compreensão desta existência é um produto do condicionamento social: o condicionamento social torna a existência de corpos físicos inteligível para nós através da construção discursiva de corpos sexuados através de certos atos constitutivos.
(…) Algumas feministas sustentam que a distinção sexo/género não é útil. Para começar, pensa-se que reflete um pensamento dualista politicamente problemático que enfraquece os objetivos feministas: considera-se que a distinção reflete e replica oposições androcêntricas entre (por exemplo) mente/corpo, cultura/natureza e razão/emoção que têm sido usadas para justificar opressão das mulheres (e.g. Grosz 1994; Prokhovnik 1999).

(Feminist Perspectives on Sex and Gender, Stanford Encyclopedia of Philosophy)

“A pesquisa hormonal e cromossômica, as tentativas de desenvolver novos meios de reprodução humana (vida criada ou consideravelmente apoiada pelo laboratório do cientista), o trabalho com transexuais e os estudos de formação da identidade de gênero em crianças fornecem informações básicas que desafiam a noção de que existem dois sexos biológicos distintos. Essa informação ameaça transformar a biologia tradicional da diferença sexual na biologia radical da semelhança sexual. Isso não quer dizer que exista um sexo, mas que existem muitos. A evidência pertinente aqui é simples. As palavras ‘masculino’ e ‘feminino’, ‘homem’ e ‘mulher’ são usadas apenas porque ainda não existem outras.”

(Woman Hating (1974), Andrea Dworkin)

“A ideologia da diferença sexual funciona como censura na nossa cultura, ao mascarar, no terreno da natureza, a oposição social entre homens e mulheres. Masculino/feminino, macho/fêmea são as categorias que servem para ocultar o fato de que as diferenças sociais pertencem sempre a uma ordem econômica, política, ideológica. Todo sistema de dominação estabelece divisões a nível material e econômico. Além disso, as divisões são abstraídas e transformadas em conceitos pelos senhores e, posteriormente, pelos escravos quando estes se rebelam e começam a lutar. Os mestres explicam e justificam as divisões estabelecidas como resultado de diferenças naturais. Os escravos, quando se rebelam e começam a lutar, interpretam as oposições sociais nas assim chamadas diferenças naturais. Pois não há sexo. Só existe sexo que é oprimido e sexo que oprime. É a opressão que cria o sexo e não o contrário. O contrário seria dizer que o sexo cria opressão, ou dizer que a causa (origem) da opressão se encontra no próprio sexo, numa divisão natural dos sexos pré-existentes (ou fora da) sociedade. A primazia da diferença constitui o nosso pensamento de tal forma que impede que se volte para dentro dela mesma para questioná-la, por mais necessário que isto seja para apreender a base daquilo que precisamente a constitui.
(…) A categoria do sexo é a categoria política que funda a sociedade como heterossexual. Como tal, não trata do ser, mas de relacionamentos (pois mulheres e homens são o resultado de relacionamentos), embora os dois aspectos sejam sempre confundidos quando discutidos. A categoria do sexo é aquela que rege como “natural” a relação que está na base da sociedade (heterossexual) e através da qual metade da população, as mulheres, são “heterossexualizadas” (a formação de mulheres é como a formação de eunucos , a criação de escravos, de animais) e submetidos a uma economia heterossexual. Pois a categoria sexo é produto de uma sociedade heterossexual que impõe às mulheres a rígida obrigação da reprodução da “espécie”, isto é, da reprodução da sociedade heterossexual. A reprodução compulsória da “espécie” pelas mulheres é o sistema de exploração em que se baseia economicamente a heterossexualidade. A reprodução é essencialmente aquele trabalho, aquela produção das mulheres, através da qual ocorre a apropriação pelos homens de todo o trabalho das mulheres. Deve-se incluir aqui a apropriação do trabalho que está associado “por natureza” à reprodução, à educação dos filhos e às tarefas domésticas. Esta apropriação do trabalho das mulheres é efetuada da mesma forma que a apropriação do trabalho da classe trabalhadora pela classe dominante. Não se pode dizer que uma destas duas produções (reprodução) seja “natural” enquanto a outra seja social. Este argumento é apenas a justificação teórica e ideológica da opressão, um argumento para fazer as mulheres acreditarem que perante a sociedade e em todas as sociedades estão sujeitas a esta obrigação de reprodução. Porém, como nada sabemos sobre o trabalho, sobre a produção social, fora do contexto de exploração, nada sabemos sobre a reprodução da sociedade fora do seu contexto de exploração.”

(The Category of Sex (1976), Monique Wittig)

“O que uma análise materialista faz por raciocínio, a sociedade lésbica realiza na prática: não apenas não existe um grupo natural de ‘mulheres’ (nós lésbicas somos prova viva disso), mas também como indivíduos questionamos a ‘mulher’, o que para nós, assim como para Simone de Beauvoir, é apenas um mito. Ela disse: ‘Uma pessoa não nasce, mas torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psicológico ou econômico determina a posição que a fêmea humana apresenta na sociedade: é a civilização como um todo que produz esta criatura, intermediária entre o masculino e eunuco, que é descrita como feminina.’
(…) Embora os fatos práticos e os modos de vida contradigam esta teoria na sociedade lésbica, há lésbicas que afirmam que ‘mulheres e homens são espécies ou raças diferentes (o palavras são usadas indistintamente): os homens são biologicamente inferiores às mulheres; a violência masculina é uma inevitabilidade biológica…’[6] Ao fazer isso, ao admitir que existe uma divisão ‘natural’ entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que ‘homens’ e ‘mulheres’ sempre existiram e sempre irão existir. Não apenas naturalizamos a história, mas também, consequentemente, naturalizamos os fenômenos sociais que expressam nossa opressão, tornando a mudança impossível. Por exemplo, em vez de ver o parto como uma produção forçada, nós o vemos como uma processo ‘natural’, ‘biológico’, esquecendo que em nossa sociedade os nascimentos são planejados (demografia), esquecendo que nós mesmos somos programadas para produzir filhos, enquanto está é a única atividade social ‘exceto a guerra’[7] que representa um perigo tão grande de morte. Assim, enquanto formos ‘incapazes de abandonar por vontade ou impulso, um compromisso vitalício e secular à maternidade como ato criativo feminino’,[8] ganhar o controle da produção das crianças significará muito mais do que o mero controle dos meios materiais desta produção: as mulheres terão que se abstrair da definição ‘mulher’ que lhes é imposta

Uma abordagem feminista materialista mostra que o que consideramos a causa ou origem da opressão é na verdade apenas a marca[9] imposta pelo opressor: o ‘mito da mulher’,[10] mais seus efeitos materiais e manifestações na consciência e corpo apropriados das mulheres. Assim, esta marca não não é anterior à opressão: Colette Guillaumin mostrou que antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, pelo menos não em seu significado moderno, já que foi aplicado à linhagem das famílias. Porém, agora, raça, exatamente como o sexo, é considerada um ‘dado imediato’, um “dado sensível”, “características físicas”, pertencentes a uma ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma percepção física e direta é apenas uma construção sofisticada e mítica, uma ‘formação imaginária’,[11] que reinterpreta características físicas (em si tão neutras quanto quaisquer outras, mas marcadas pela sistema social) através da rede de relacionamentos em que elas são percebidos. (Eles são vistos como negros, portanto são negros; elas são vistas como mulheres, portanto, são mulheres. Mas antes de serem vistos dessa forma, primeiro tiveram que ser feitos dessa forma.)”.

(One Is Not Born A Woman (1980), Monique Wittig)

Anne Fausto-Sterling, feminista professora emérita de biologia, comenta como a ideologia da diferença sexual atinge pessoas intersexo, que sofrem desde a infância cirurgias invasivas para “adequar” seus corpos ao ideal de um dos dois sexos biológicos, mesmo em casos nos quais sua variação corporal não traz risco a sua saúde:
No futuro, as divisões hierárquicas entre paciente e médico, pais e filhos, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais irão dissolver-se. Todas as vozes críticas das pessoas discutidas neste capítulo apontam para fissuras no monólito dos escritos e práticas médicas atuais. É possível imaginar uma nova ética de tratamento médico, que permita que a ambiguidade prospere, enraizada numa cultura que ultrapassou as hierarquias de gênero. Na minha utopia, as principais preocupações médicas de um intersexual seriam as condições potencialmente fatais que por vezes acompanham o desenvolvimento intersexual, tais como desequilíbrio de sal devido à disfunção adrenal, frequências mais elevadas de tumores gonadais e hérnias. A intervenção médica destinada a sincronizar a imagem corporal e a identidade de género raramente ocorreria antes da idade da razão. Tal intervenção tecnológica seria um empreendimento cooperativo entre médicos, pacientes e conselheiros de gênero. Como observou Kessler, a genitália incomum dos intersexuais poderia ser considerada ‘intacta’ e não ‘deformada’; a cirurgia, vista agora como um gesto criativo (os cirurgiões ‘criam’ uma vagina), pode ser vista como destrutiva (o tecido é destruído e removido) e, portanto, necessária apenas quando a vida está em jogo.”

(4. Should there be only two sexes?, Sexing the Body (2000), Anne Fausto-Sterling)

Se somos marxistas, não podemos pensar na biologia como algo “pré-social”. A existência das nossas características biológicas na sociedade é sempre mediada por relações sociais. O materialismo marxista, aliás, não se refere ao pré-social.
É claro que se isso for reduzido à caricatura de “então você está dizendo que a biologia/a anatomia não existe!”, tudo rui. Mas acontece que ninguém está dizendo que o sexo biológico não existe, apenas questionando a ideologia da divisão exata da humanidade em dois modelos ideais de “sexo masculino” e “sexo feminino”, a partir do reconhecimento de que essa ideologia é fundamentalmente mediada pelas posições sociais de gênero.
A classificação biológica feita no momento do nascimento enquanto sexo feminino ou sexo masculino, na nossa sociedade serve para assinalar à pessoa determinada posição social de gênero, a partir do potencial identificado na sua anatomia para ocupar essa posição social. Como dito em uma das citações acima, não é um ato meramente descritivo mas normativo.
Não existe nenhuma realidade biológica a ser defendida de pessoas que querem “negá-la”. Podemos então questionar profundamente o “comunista” da citação feita anteriormente quando diz que defende a “reprodução e a continuidade da espécie humana”. A reprodução e a continuidade da espécie humana não estão em risco de ataque pelo feminismo e pelas “teorias de gênero”, e portanto não precisam ser “defendidas”. Ora, essa é uma ideia fundamentalmente fascista e anti-feminista. A reprodução vai continuar existindo sem que precisemos da coerção para que a humanidade ocupe as posições de “homem” e “mulher”.
Quem tem interesse nessas ideias é a sociedade burguesa, que quer dirigir exércitos de fascistas para atacar feministas e pessoas LGBT que ousam resistir à sua exploração e opressão, em nome da “defesa da reprodução humana”. A “defesa do sexo biológico, da reprodução humana, da família” serve ao controle social, à divisão do proletariado, à proteção da burguesia.

CRIANÇAS E TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Primeiro ponto: reconhecer as pessoas LGBT como parte da humanidade pressupõe entender que elas se reconhecem enquanto LGBT desde a infância. Isso sem nenhum suposto “professor progressista globalista” entrar na mente delas. É lógica: da mesma forma que pessoas heterossexuais e cisgêneras se entendem dessa forma desde a infância, de forma “natural” já que é exatamente o esperado delas, crianças LGBT também se reconhecem dessa forma, só que encontrando pela frente um mundo hostil, onde serão submetidas à violência a que são submetidas as “anti-naturais”, em casa, na escola e na rua. É essencial reconhecer isso, pois de outra forma estamos dando apenas “meia-humanidade” às pessoas LGBT, como se ser LGBT fosse alguma espécie de desvio, de “condição” que nos acomete só a partir da vida adulta. 
Não é diferente com crianças trans. Crianças que se identificam com um gênero diferente do assinalado no nascimento. Por que haveria de ser diferente? É algum destino natural nos identificarmos com o gênero que a sociedade designa de acordo com nosso corpo?
Não é, e por isso existem pessoas trans. É um fenômeno social, pois se reconhecer em determinado gênero é uma questão social. 
Ser trans não necessariamente inclui alterações corporais. Por vezes, a pessoa trans apenas deseja viver sob um nome e pronomes diferentes, se apresentando com roupas “incongruentes” com o gênero que se espera dela, por exemplo (transição social). Outras vezes, sim, a pessoa trans deseja realizar alterações corporais. Isso tem a ver com o que chamamos de disforia de gênero: o sofrimento que decorre da incongruência entre a identidade de gênero de uma pessoa e o gênero que foi originalmente assinalado no momento do nascimento dessa pessoa (Beatriz Pagliarini Bagagli). A pessoa pode se sentir mais aliviada já apenas com a transição social, mas outras vão sentir necessidade e demandar as alterações corporais, seja a hormonização, a cirurgia, ou ambos.
Enquanto fenômeno social, defender que pessoas trans tenham acesso a tais procedimentos não tem contradição nenhuma com a luta contra o sistema de gênero dominante considerando-o a base para o sentimento de que para ser de um gênero deve-se ter um corpo ou outro. Simplesmente, junto dessa luta, reconhecemos que não há estudo científico nenhum que vá recomendar que se tente fazer uma terapia de conversão (“cura” trans). Os estudos indicam que a disforia de gênero não resolvida leva à depressão, auto-mutilação e ideações suicidas, e que a possibilidade de realizar as alterações corporais desejadas tem efeitos comprovadamente benéficos.
Além disso, sequer seria ético negar às pessoas a autonomia sobre procedimentos de alteração corporal por pseudo-preocupações “sociais”, querer “corrigir socialmente” a própria existência de pessoas trans. Ser trans não é algo a se evitar.
O marxismo não tem problema nenhum com a autonomia corporal. Não tem nada de essencialmente ruim em processos de alteração corporal. Podemos debater sobre estereótipos de gênero, posições sociais de gênero e a coerção social para se ter um corpo ou outro (assunto que não percorre só o gênero), mas essa é uma discussão sobre questões estruturais que não tem nada a ver com atuar contra a autonomia sobre processos de alteração corporal. É errôneo dizer que pessoas trans reforçam os estereótipos de gênero:
“Todas essas assunções que colocam a transgeneridade como lugar inadequado do ponto de vista existencial são equívocas.
(…) Dizer que pessoas só são trans em virtude da internalização de estereótipos de gênero, como se a existência de pessoas trans só pudesse se resumir a esses estereótipos, é uma visão cissexista sobre a transgeneridade. Associar as identidades trans à mera alienação é invisibilizar os processos de resistência da população trans. Associar as identidades trans a simples reprodução de estereótipos é parte em si mesma de uma visão estereotipada da transgeneridade, pois desconsidera que a transgeneridade é múltipla. Não existe forma pré determinada para ser trans, transgeneridade, neste sentido, não é uma condição imposta de fora, ela parte necessariamente dos processos de resistência das próprias pessoas trans, e as pessoas trans mobilizam a transgeneridade como forma de reivindicação de seus direitos e luta contra os estigmas transfóbicos.
(…) Dizer que pessoas trans reforçam estereótipos de gênero é não apenas uma formulação imprecisa em termos de análise do funcionamento social do gênero, mas também uma perspectiva que visa culpabilizar as próprias pessoas trans pela opressão que elas estão expostas em decorrência de não serem cis. Dizer que pessoas trans reforçam estereótipos de gênero, da forma como é feita com o intuito de culpabilizar essas pessoas, como se o gênero das pessoas cis fosse algo não marcado no modo do funcionamento deste estereótipos, acaba impedindo a compressão dos reais motivos que levam a reprodução de tais estereótipos assim como distorce e difama a luta das pessoas trans por direitos e cidadania — e nos impede, justamente, de compreender que são as próprias pessoas trans as mais interessadas no desmantelamento de normas e opressões de gênero e sexualidade.”

(A transgeneridade é conservadora porque reproduz estereótipos de gênero?,
Beatriz Pagliarini Bagagli)


Crianças pré-púberes não recebem hormonização. Na passagem para a puberdade, adolescentes em acompanhamento podem receber bloqueadores de puberdade, medicamentos que são comprovadamente seguros pois já são utilizados há muito tempo em crianças cisgêneras com puberdade precoce. Seguro é relativo, pois livre de risco nenhum medicamento é, mas isso nunca é uma questão quando eles se destinam a tratar algo que a sociedade considera normal de se tratar (como a puberdade precoce). Apenas quando se rejeita determinado fenômeno, no caso a identidade de gênero trans, é que se começa a discutir efeitos colaterais de medicamentos. Mas o fato é que se tratam de medicamentos estudados há muito tempo, que adiam os efeitos da puberdade no corpo, e são completamente reversíveis. Parando de tomar, os efeitos da puberdade continuam.
Eles se destinam exatamente a fornecer ao adolescente mais tempo para decidir se querem mesmo realizar a transição de gênero. Reduz-se a disforia associada às transformações corporais passadas na puberdade, comprovadamente aumentando o bem-estar e diminuindo casos de ideação suicida. Há casos em que, com o tempo para se pensar, se decidiu não realizar, cessando os bloqueadores de puberdade e a puberdade continuando após. Em outros, realmente se percebeu que se queria a transição de gênero. Aí, aos 16 anos de idade, pode-se tomar os hormônios cruzados (estrogênio, testosterona), que facilitam as alterações corporais direcionadas à transição de gênero. Aos 18, pode-se realizar a cirurgia de redesignação sexual. 
O principal é: esses procedimentos são comprovadamente benéficos, na esmagadora maioria dos casos se comprovando a melhora do bem-estar dos indivíduos trans, a melhoria da qualidade de vida, maior satisfação nos relacionamentos, maior autoestima e confiança e reduções na ansiedade, depressão, tendências suicidas e uso de substâncias. As taxas de arrependimento em relação a procedimentos de alteração corporal por adolescentes e adultos trans giram em torno de 1%.
Temos aqui uma posição de princípio: se trata de uma pauta de direito fundamental das pessoas transexuais, e quem se insurge contra isso não o faz por razões científicas, mas por acreditar que há algo de errado em ser trans. Porque querem impor terapia de conversão às pessoas trans, essencialmente por pensarem algo como: “nessa idade, há chance de tornarmos essa gente em pessoas normais. Qualquer ‘desvio’ se manifestando tão cedo só pode ser influência desses pervertidos na mídia e nas escolas”. É uma violência da transfobia hegemônica contra jovens trans, e se impõe a tarefa de não os deixarmos sozinhos.
É inaceitável se preocupar com a “indústria farmacêutica” e com os efeitos de medicamentos? Não, mas não deve ser postura de comunistas se unir às campanhas de “cura trans” com essa desculpa. Se essa é a preocupação, primeiro é necessário se posicionar contra a campanha anti-trans, ver o que as pessoas trans já estão falando sobre essa questão, e a partir disso tentar contirbuir à luta das próprias pessoas trans, que são as interessadas, sobre essa pauta específica. A própria presunção de que um grupo oprimido seria tão alheio às próprias necessidades que seria impossível tratar desse assunto junto dele, em aliança com seus interesses e luta por autonomia, sendo necessário se unir aos fanáticos anti-trans pra falar disso já é um pensamento infectado pela transfobia, além de uma arrogância que fica especialmente vergonhosa em comunistas.

(Exemplo de discussão sobre a tecnologia dos processos de alteração corporal: Tecnologias biossociais de gênero no TRAVECOCENO – 23/10 – Espaço Verde (FFLCH) – Centro de Pesquisa Travesti)

CONCLUSÃO

“O acúmulo de forças fascista em torno do sentimento anti-trans, enquanto produto da crise do sujeito burguês (masculino), ao contrário do que se faz crer, não encontra fronteiras no interior do mercado político. Afinal, cada um dos seus representantes — os “partidos” — está apenas preocupado em se apresentar como a empresa mais competente para a tarefa da administração capitalista da crise. Assim, pode-se dizer que, hoje, um espectro assombra o mundo: o espectro transsexual. Contra ele, unem-se numa santa caçada fascistas e neoliberais, social-democratas e ambientalistas, marxistas-leninistas e trotskistas, bourgeois e citoyens.”

(Avante, Bárbaras!, ou Reflexões antimodernas sobre o protesto de Keyla Brasil, Narciso)

As teorizações anti-trans “comunistas” propõem, contra a pauta trans, que a questão de classe deve ser a principal. Mas se é a principal, está incluso nisso que a transição socialista passa pela abolição da instituição burguesa da família, e em decorrência disso faz parte do programa político comunista a questão LGBT. 
A posição anti-LGBT ou a não-inclusão da questão no nosso programa não se justifica. Vamos conceder por um momento que as questões estritamente “de classe” são prioritárias. Mesmo pensando assim, o gênero não vai embora se a gente simplesmente disser com muita força que “o que importa é a classe”. A questão se resolve quando nós demonstrarmos materialmente que o que importa é a classe. Quando tivermos força material pra demonstrar que essas divisões da classe trabalhadora são secundárias.
Isso envolve as pautas econômicas imediatas da classe trabalhadora, suas pautas sindicais, de categorias específicas, etc. mas também suas pautas políticas e culturais, nacionais, raciais, de gênero e sexualidade.
A posição LGBTfóbica ou transfóbica não é inaceitável apenas ser discriminatória mas também por atrasar o trabalho de demonstrar para a classe trabalhadora o quanto as divisões relacionadas à gênero e sexualidade são secundárias frente ao nosso antagonismo contra a burguesia.
E não conseguiremos demonstrar isso defendendo o silenciamento dessas questões, achando que assim vamos conquistar a classe, porque nesse terreno a burguesia vence. Nós não vamos conseguir “cooptar” o sentimento anti-trans de parte da classe trabalhadora pra chamá-la pro nosso lado.
A onda anti-trans se baseia na desumanização, na ideia de que pessoas trans são pessoas manipuladoras, malucas e pervertidas que querem enganar as pessoas “normais”. Muitos assassinatos são realizados por homens que alegam que foram “enganados” por mulheres trans, e isso às vezes ganha até mesmo status jurídico para livrar o homem da condenação. Não é aceitável legitimar a narrativa de que pessoas trans estão “mentindo” e “querendo enganar as pessoas”.
A ideia de “defender a realidade biológica” está implicada nessa narrativa transfóbica. Pessoas trans estão dizendo algo sobre sua realidade social, e sobre as demandas que exigem para se proteger da violência transfóbica e se livrar da sua posição subalterna; e a retórica dos anti-trans é simplesmente dizer que estão mentindo, e “restaurar” a posição dessas pessoas no gênero assinalada no nascimento. É transfobia, por mais que se disfarce e se tergiverse.
Poderia me aprofundar ainda mais nos “pontos polêmicos” nesse texto, como a questão dos banheiros e dos esportes. Recomendo o texto “Exploring Transgender Law and Politics”, da feminista radical Catharine MacKinnon, que trata desses temas e de outros também abordados aqui. Catharine MacKinnon se insurgiu contra o “feminismo” anti-trans e, como as citações de Andrea Dworkin e Monique Wittig acima, prova que sequer a referência do movimento “radfem”/”gender-critical” à corrente feminista radical da chamada segunda onda do feminismo corresponde à realidade. Apesar de que existem teóricas transfóbicas nesse período, como Janice Raymond, autora de The Transsexual Empire (nome risível) e que já se juntou ao governo estadunidense para prejudicar concretamente pessoas trans.
Essas teorias transfóbicas não compreendem ou visam ocultar que a feminilidade é imposta às mulheres trans, como também é imposta às mulheres cis. Não da mesma forma pois, como muitos ressaltam, a mulheridade da mulher trans é contrariada socialmente. Mas isso não permite fazer aquela confusão comum na qual se diz que “mulheres cis são oprimidas por ser mulheres, enquanto mulheres trans são oprimidas por lhe ser negado o status de mulher”. Isso é uma simplificação, que cai em erro.
A feminilidade das mulheres trans foi contrariada socialmente; esse é um aspecto da identidade trans. Precisamente porque a identidade trans é negada, e é dito para a mulher trans que ela deve se identificar como homem. Mas esse é só um aspecto da questão. Precisamente porque o determinante da questão não é a identidade, mas a divisão de gênero.
Os exatos mesmos mecanismos que “contrariam socialmente” a identidade das mulheres trans, a posicionam socialmente no lugar da feminilidade. A expulsão familiar de uma mulher trans, baseada na negação social da sua identidade feminina, a posiciona na precarização em que ela recorre à prostituição. A violência transmisógina se baseia inicialmente na negação da identidade feminina da mulher trans, na tentativa de “recolocá-la”, de dizê-la que ela “é um homem”, mas exatamente esse “dizer que ela é um homem”, que ela é um homem que “quer enganar os outros se fazendo passar por mulher”, a coloca em uma posição social em que se considera que ela é passível de receber a violência misógina que mulheres sofrem: objetificação, estupro, violência doméstica, feminicídio.
A sociedade burguesa é hipócrita. Nega que mulheres trans são mulheres mas posiciona as mulheres trans na posição social de mulher. Percebemos, então, que a negação do gênero das pessoas trans é apenas a particularidade da mulheridade trans que a coloca na situação social de uma mulheridade inaceitável, abjeta. Sua precarização tem ligação justamente com essa visão social.
A identidade das pessoas trans é a expressão material da sua posição social enquanto pessoas trans. Pessoas trans não são pessoas trans porque querem, mesmo que seja uma decisão que vem do âmbito pessoal, no imediato. Há um diálogo entre o social e o individual. Ninguém escolhe conscientemente sua sexualidade, da mesma forma ninguém escolhe conscientemente sentir necessidade da transição de gênero. É um entrelaçamento de elementos individuais e sociais, relativamente inconscientes desde a infância da pessoa. A identidade de uma pessoa trans parte da sua autonomia, mas o seu posicionamento em uma sociedade em que existe uma posição social específica reservada às pessoas classificadas como “trans”, não. Por isso, ironicamente, “radfems” e seus adeptos “comunistas” tomam uma posição liberal sobre gênero quando negam que mulheres trans são coercivamente relegadas à sua posição social feminina, tanto quanto mulheres cis.

3/12/2023

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