Acerca da polêmica Ocidente-Oriente no Anti-Dimitrov


Bombardeie o Comitê Central

Sobre as acusações de primeiro-mundismo e menchevismo direcionadas a Francisco Martins Rodrigues

Estive presente em fevereiro na sede do PCB-RR de Porto Alegre, no debate Desafios do Movimento Comunista Internacional, que teve como convidada Ana Barradas, militante comunista portuguesa que divulga a obra de Francisco Martins Rodrigues e militou com ele na Organização Comunista Política Operária (milita hoje no Bandeira Vermelha, de remanescentes dessa organização).
Estou em outra organização, mas fui como interessado nos bons rumos do PCB-RR e do seu aprofundamento da Reconstrução Revolucionária, como alguém que militou no PCB (mais especificamente no Coletivo LGBT Comunista do Rio Grande do Sul) durante 5 anos, e como interessado no tema.
Ana Barradas falou sobre o Anti-Dimitrov e suas origens, o papel de Diógenes Arruda, dirigente do PCdoB, no dimitrovismo no PCP(R); as semelhanças da cisão do PCB-RR com a cisão que representou a formação da Política Operária (formada por militantes que abandonaram o PCP(R)); o frentismo popular, a crítica comunista do stalinismo e a relação do PCB-RR com o KKE; fez uma crítica ao caráter imperialista da China, entre outros temas.
Um membro do PCB-RR presente na mesa de debate fez um contraponto focando na questão da China. Penso que o fez pelo tema ter se sobressaído na exposição de Ana Barradas. Sobre suas posições, basta dizer que o companheiro se referiu a Deng Xiaoping (principal representante da virada revisionista de 1978 na China) como “camarada” e tem, na minha leitura, a mesma posição pró-China de figuras como Jones Manoel e Elias Jabbour. Nessa altura, todo mundo já conhece essa posição.
Mas a posição pró-China serviu de base para o companheiro formular de forma mais global a divergência de fundo que sua linha representa com toda a perspectiva exposta por Ana Barradas, e com a perspectiva de FMR e da Política Operária no geral, a que vou me referir aqui como polêmica Ocidente-Oriente. Impasse presente em todas as discussões sobre o Anti-Dimitrov, desde a primeira discussão pública na ocasião de um relançamento do livro no Brasil em 2019, disponível no Youtube.
Impasse compreensível na ocasião, já que quase ninguém tinha lido o livro, no debate no PCB-RR, com mais pessoas familiarizadas com a discussão, poderia ter sido objeto de debate. De qualquer forma, podemos ficar felizes com os espaços do PCB-RR pelo menos discutirem o livro, ao contrário de outras organizações que o tratam com aversão. E discutiram-se, a partir das contribuições, outros assuntos ilustrativos da experiência portuguesa, como o papel do PCP na Revolução dos Cravos, o 25 de Abril do Povo do PCP(R) e o PREC.
Qual é a polêmica? No debate de 2019, ela apareceu com um certo incômodo com o subtítulo do livro: Meio Século de Derrotas da Revolução (1935-1985). Questões surgiram. Como assim “derrotas”? E como assim “derrotas” em 1935-1985? E Cuba? E China? E as revoluções anti-coloniais na África? Gabriel Lazzari faz um contraste dessa perspectiva com a “renovação do marxismo-leninismo” de Domenico Losurdo. Jones Manoel rejeita a análise de FMR sobre Mao, e discorda que Dimitrov seja “um renegado”. Uma contribuição dentre os que assistiam explica que as críticas do Anti-Dimitrov à Frente Popular se referem a processos europeus.
Era nítida a divergência do Anti-Dimitrov em forma e conteúdo com o que o PCB vinha apresentando como “ressurgimento do marxismo-leninismo” no Brasil: o resgate das “vitórias” de todas as revoluções passadas e dos PCs pelo mundo, como alternativa às análises das organizações trotskistas, a defesa do “socialismo real” e dos “países socialistas atualmente existentes”, o papel de Jones Manoel no debate contra a “demonização de Stalin” (com um balanço no geral positivo sobre a sua figura, que por mais que se quisesse, não deixava de ser positivo só por apontar algumas críticas que apenas refletiam as ambiguidades de um PC “oficial”, ligado à URSS pós-stalinista), as influências de Domenico Losurdo.
Agora, no debate de fevereiro na sede do PCB-RR de Porto Alegre, a polêmica Ocidente-Oriente se apresentou com o companheiro pró-China fazendo um resgate do debate leninista sobre as revoluções nos “elos fracos” dos países periféricos. A história é a seguinte: o marxismo estabelecia que a revolução proletária teria que vir dos países avançados, com base econômica capitalista avançada, propícia à transição socialista. O bolchevismo e o marxismo-leninismo, resgatando elementos de Marx e Engels mas analisando sua conjuntura concreta, introduzem o entendimento de que a revolução proletária poderia eclodir nos países periféricos, mesmo com tarefas de revolução burguesa pendentes.
Entrava-se numa era em que a burguesia dos países periféricos se mostrava débil na realização das tarefas democráticas burguesas. O proletariado poderia tomar a dianteira na realização dessas tarefas, e nisso sem meramente realizar a revolução burguesa, sem se submeter à direção burguesa. Poderia e deveria tomar a dianteira, se colocando como dirigente de um processo de revolução dupla: a revolução burguesa sob sua direção, com a palavra de ordem “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, avançando rumo à revolução proletária (Lenin, Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática). Essa revolução num país periférico, como um golpe no imperialismo, poderia contribuir à revolução em outros países.
Ao fazer essa exposição das aquisições teóricas e políticas leninistas após a fala de Ana Barradas, o que fica implícito é uma acusação de uma espécie de primeiro-mundismo e menchevismo, direcionada tanto a ela quanto para toda a linha de FMR e da Política Operária (“acusação” não no sentido pessoal, mas de debate político). Ou seja, essa linha seria um retorno à ideia menchevique, pré-leninista, kautskista, de que a revolução proletária precisa acontecer em um “país avançado”, e que as “derrotas da revolução” aconteceram porque elas se deram em países periféricos. Os países periféricos teriam que esperar a revolução ser feita nos países maduros para a transição ao socialismo, ou a revolução mundial simultânea.
Acusações do tipo repetidamente surgem nas discussões na internet, mais frequentemente nos meios maoístas e hoxhaístas. Entendem que o Anti-Dimitrov fala contra “frentes”. Formulam, a partir disso, que a Revolução Chinesa de 49, por exemplo, teria realizado “uma frente”, portanto as críticas de FMR à Frente Popular “se aplicariam à Revolução Chinesa”, ele seria “contra a Revolução Chinesa e contra revoluções nacionais em países periféricos” no geral, porque elas teriam formado “frentes”.
Contra essa distorção, retomemos o contexto da posição comunista de Francisco Martins Rodrigues (FMR).

O GIRO HOXHAÍSTA DA CORRENTE ML

FMR não falava contra revoluções nacionais e anti-coloniais, alianças com o campesinato, etc. Não tem a ver com isso ser contra a estratégia da Frente Popular. FMR foi um dos fundadores do marxismo-leninismo anti-revisionista de inspiração maoísta, dos anos 60 (não confundir com o marxismo-leninismo-maoísmo, síntese específica posterior), em Portugal, quando denunciou e rompeu com o PCP justamente pela sua falta de apoio aos movimentos de libertação nacional em Angola e Moçambique.
Um contexto pouquíssimo discutido do Anti-Dimitrov, mas que está claramente exposto no livro, é que este partia do debate da corrente ML anti-revisionista dos anos 60 e 70. A posição anti-dimitrovista surge da rejeição ao giro hoxhaísta dessa corrente (que FMR avaliou como giro de direita) quando Enver Hoxha, respondendo à derrocada revisionista da China em 1978 após a derrota da Revolução Cultural, renega a revolução chinesa e o maoísmo como uma forma de revisionismo:
“Ao encontrar-se privados de estrutura ideológica pela derrocada do maoísmo, o PTA, o PC do Brasil e a generalidade dos partidos ML procuraram, com energia redobrada, escorar-se nas tradições da última fase do movimento comunista. A partir de 1976, o eixo ideológico da corrente marxista-leninista começou a deslocar-se do maoísmo para o dimitrovismo. A isto se resumiu a apregoada campanha de crítica ao ‘pensamento maotsetung’. E por isso o pretenso ‘passo em frente’ da corrente ML pós-maoísta se saldou por um passo à direita.
(…) “Se o desvio maoísta, impelido pelo oceano do campesinato pobre da China, teve potencialidades para levar a cabo uma gigantesca revolução agrária anti-imperialista, que foi o mais profundo golpe na burguesia internacional depois da Revolução de Outubro, o desvio dimitrovista, inspirado no reformismo operário europeu, não produziu nenhuma revolução autêntica. A sua linha unitarista antifascista e a experiência das democracias populares da Europa Oriental ficaram muito aquém da revolução chinesa na riqueza da luta de classes e afundaram-se no revisionismo muito mais rapidamente do que ela.
A diferença vai pois no sentido contrário ao que pretende o PTA. O centrismo maoísta, com o seu revolucionarismo populista pequeno-burguês, não constitui um perigo tão grande para o proletariado como o centrismo dimitrovista, capaz de se cobrir com uma máscara mais elaborada de fórmulas ‘marxistas’ e de ir melhor ao encontro da tendência operária espontânea para o reformismo.
Se é vital para o movimento comunista continuar a desmistificar o pretenso ‘pensamento maotsetung’ como uma deformação do marxismo típica do Oriente camponês, mais importante ainda é desmascarar o dimitrovismo como deformação do marxismo típica do Ocidente imperialista”.

(Anti-Dimitrov: Meio Século de Derrotas da Revolução (1935-1985), Francisco Martins Rodrigues, p. 253)

Esse giro hoxhaísta encabeçado pelo PTA (Partido do Trabalho da Albânia) foi seguido pelo PCdoB (um texto famoso do PCB menciona isso), pelo PCR, pelo PCP(R) de Portugal. Praticamente toda a corrente ML anti-revisionista dos anos 60 deslocou-se do maoísmo para o hoxhaísmo. O que muitos conhecem hoje como “maoísmo” é o marxismo-leninismo-maoísmo, síntese posterior oriunda das contribuições do Partido Comunista do Peru (Sendero Luminoso), do Partido Comunista Revolucionário dos Estados Unidos (RCP, Revolutionary Communist Party) e outras organizações do Movimento Revolucionário Internacionalista formado em 1984.
O hoxhaísmo colocava ênfase no resgate da figura de Stalin (o maoísmo também fez esse resgate contra o XX Congresso do PCUS, mas Mao tinha mais críticas a Stalin) e introduziu a ênfase na figura de Dimitrov como parte de uma ortodoxia marxista-leninista ligada à URSS de Stalin, em contraste com o “revisionismo maoísta”. O maoísmo também se baseava em parte em Dimitrov, como veremos, mas a fixação em Dimitrov vem do giro hoxhaísta. E é interessante ver o caminho de todas as organizações que fizeram esse giro: o PCP(R), o PCdoB, o PCR brasileiro e sua UP como exemplo atual, todas se afundando em reformismo.
Debatendo contra esse hoxhaísmo predominante, o Anti-Dimitrov carrega muito da sua linguagem, da linguagem das discussões marxistas-leninistas do seu tempo. Tem por base, portanto, uma crítica ao maoísmo. O Anti-Dimitrov se deu no contexto da formação da Política Operária, portanto, seu rompimento é tanto com o comunismo “oficial”, khrushchevista do PCP, quanto com ambas as correntes anti-revisionistas, o maoísmo e o hoxhaísmo. Mas a sua crítica ao maoísmo rejeita o giro direitista do hoxhaísmo, já que deseja superar ambos pela esquerda.
Sua crítica não é à revolução nacional chinesa. A Revolução Chinesa de 49 não é “frentista” devido ao seu caráter nacional, democrático. O que ele critica em termos de “frentismo” e centrismo no maoísmo é o “Bloco das Quatro Classes”, a “Nova Democracia” – proletariado, campesinato, pequena-burguesia e média burguesia nacional. Uma coisa é a revolução nacional, outra é crer que a continuidade do processo poderia consolidar uma uma ditadura do proletariado e uma transição ao socialismo em aliança com a burguesia nacional. O poder da burguesia no “Bloco das Quatro Classes” fragilizou o próprio processo revolucionário, constatação que pode não ser tradicionalmente maoísta, mas é inspirada pela profunda experiência da Revolução Cultural, como FMR desenvolveu depois em textos como “A Revolução Cultural e o Fim do Maoísmo”, de 1988. Em outro texto, de 1989, chamado “Mao Nunca foi Comunista?”, desenvolve também sua crítica à perspectiva hoxhaísta que deriva da crítica aos erros do maoísmo uma crítica da própria revolução nacional chinesa.

REVOLUÇÃO DUPLA

Mas o Anti-Dimitrov já explica essa posição no fundamental. A “gigantesca revolução agrária anti-imperialista” chinesa, o “mais profundo golpe na burguesia internacional depois da Revolução de Outubro”, é diferenciada do desvio dimitrovista, “inspirado no reformismo operário europeu” e que “não produziu nenhuma revolução autêntica”. O dimitrovismo é a “deformação do marxismo típica do Ocidente imperialista”.
O centrismo maoísta é criticado como deformação do marxismo típica do “Oriente camponês”, seu desvio impelido pelo “oceano do campesinato pobre da China”, mas esse desvio não é a revolução nacional. A revolução nacional é o que o maoísmo tem de superior ao hoxhaísmo, e o que define a ênfase hoxhaísta no dimitrovismo como giro direitista, devido à base social europeia das Frentes Populares, mais tendente ao reformismo, enquanto a base social camponesa da China produziu a Revolução de 49.
O defeito criticado nessa base social camponesa se refere ao momento posterior. O esquema leninista e bolchevique da revolução dupla fala da aliança operário-camponesa, mas essa aliança se dá sob direção proletária. Não no sentido de tutelar os camponeses, mas dos interesses de classe que guiam o processo revolucionário. Proletariado e campesinato marcham juntos na realização da revolução nacional, com o proletariado dando todo apoio ao campesinato nos seus interesses de classe anti-feudais. Mas para além disso, rumo à revolução proletária e o socialismo, o campesinato é incapaz de marchar junto enquanto classe. Isso porque os seus interesses enquanto classe estão na propriedade da terra, enquanto o proletariado tem interesse no fim do capital e da economia mercantil. É necessário um recorte de classe no interior do campesinato, entre camponeses pobres, médios, ricos. O proletariado chinês, basicamente, deveria usar o impulso social da revolução burguesa, anti-feudal, em aliança com o campesinato, sem o qual não teria base social para fazer a revolução nas suas condições concretas, para passar à revolução proletária.
É aí que a base econômico-social chinesa mostra sua fraqueza, como mostrou na Rússia: isolada nacionalmente, a revolução chinesa perde a capacidade de dar um direcionamento proletário ao processo (apesar das tentativas e disputas de linha), e a revolução burguesa que deveria vir atrás da revolução proletária, a atropela. Atropelando assim o próprio campesinato, principalmente o campesinato pobre (Observe-se por exemplo a situação do campesinato pós-Deng).
Com a fraqueza, tanto da base proletária russa e chinesa quanto da revolução mundial (a previsão estava parcialmente correta, as revoluções em outros países aconteceram, o que elas não tiveram foi a força prevista), o poder proletário é substituído pelo poder do Estado e do Partido. Medida condicionada pela necessidade de se proteger, tanto da base econômico-social pequeno-burguesa quanto da agressão imperialista externa, a propriedade estatizada e a repressão política estatal reproduzem o capital – a separação da classe trabalhadora dos meios de produção – de outra forma. Ao invés de transição socialista, o capitalismo de estado sem ditadura do proletariado prepara a transição para a futura restauração do capitalismo privado tradicional.
O isolamento nacional da China não se resolve com o fato de que a União Soviética existia, já que esta em seu turno passou pelo mesmo processo de isolamento nacional e atropelamento da revolução proletária pelos elementos de modernização econômica burguesa conquistados pela revolução. Para sobreviver, a União Soviética se vê obrigada a privilegiar seus interesses geopolíticos particulares em detrimento do internacionalismo proletário, o que está na origem do dimitrovismo e da estratégia da Frente Popular. Que os “países socialistas” engajem em “relações” próprias da geopolítica burguesa não deve ser confundido com internacionalismo. Eles ainda estão isolados nacionalmente, pois se relacionam enquanto nações, contidas em seus próprios interesses.

ANTI-COLONIALISMO E DERROTA DA POSIÇÃO PROLETÁRIA

É o “Bloco das Quatro Classes”, portanto, que é apontado como centrista e influenciado pelo dimitrovismo, mas isso não significa que ele seja uma “Frente Popular”, já que ele é um bloco que tem como base uma revolução. O Anti-Dimitrov fala das Frentes Populares na Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal, onde processos revolucionários foram sabotados.
A Frente Popular era uma estratégia específica das conjunturas de combate ao fascismo, que abandonava a necessidade de hegemonia e demarcação de classe do proletariado em nome da unidade “popular”, diluindo os interesses de classe proletários e pequeno-burgueses dentro da categoria do “popular”. Era a avaliação de que, com o fenômeno novo do fascismo, podia-se revisar o leninismo: contra o fascismo, o partido comunista deveria se integrar à luta “popular” pela restauração da democracia burguesa.
Lenin falava de luta do proletariado pela democracia no contexto específico dos países em que estavam na ordem do dia revoluções nacionais, revoluções democrático-burguesas contra resquícios feudais, não países capitalistas desenvolvidos. Nestes, os teóricos da estratégia da Frente Popular, como Dimitrov, revisaram o leninismo inaugurando uma “etapa intermediária” entre a queda da ditadura fascista e o triunfo da ditadura do proletariado. A verdadeira política comunista e leninista deveria ter sido que a única revolução que se encontrava pra além do fascismo era a revolução proletária, a derrubada revolucionária da ditadura fascista. Era a essa perspectiva estratégica que o proletariado deveria ter subordinado a sua tática, não à perspectiva “popular”, intermediária entre proletariado e pequena-burguesia. Portanto, não se trata de negar a necessidade da tática, de qualquer aliança, de “qualquer frente”.
O Anti-Dimitrov não aponta o dedo para as revoluções periféricas “impuras”. Seu dedo está apontado para três bases sociais do centrismo: a nova pequena burguesia assalariada nos países capitalistas (“técnicos, quadros, aristocracia e burocracia operária, intelectuais, serviços”, pg. 271), a nova burguesia de Estado na União Soviética (“Formou-se na União Soviética um tipo original de burguesia, até então desconhecido – a burguesia ‘socialista’ de Estado, sustentada pela exploração dos operários e camponeses por intermédio da propriedade estatizada”), e a burguesia nacional nos países dependentes (“dependentes” aqui usado como sinônimo de periféricos, pg. 280).
Como já assinalado no exemplo acima: o problema para FMR não era a revolução nacional em Angola e Moçambique, mas a falta de apoio do PCP a estas revoluções, em nome do compromisso da Frente Popular. Isoladas nacionalmente, as revoluções africanas ficaram sob direção da burguesia nacional, mas isso não é responsabilidade da luta anti-colonial e sim do nacional-reformismo europeu. As revoluções anti-coloniais fizeram seu papel, previsto pelo leninismo, de contribuir à revolução proletária mundial com golpes no imperialismo, mas ficaram sem a sua outra metade.
A virada do relatório Dimitrov e das Frentes Populares em 1935 se inseria num grande contexto de pedido de “calma” por parte da IC aos movimentos de libertação nacional nas colônias. Sobre isso, trago uma citação suplementar de outro comunista, CLR James, falando de George Padmore, secretário da IC:
“Entre 1928 e 1935, toda a política do estado russo, e da Internacional Comunista que ele controlava, baseava-se na teoria da revolução mundial iminente. George estava ciente da luta entre os stalinistas e trotskistas sobre políticas, tanto internas quanto externas; mas não parecia afetar ele ou seu trabalho de qualquer forma.
Seus principais alvos eram a Grã-Bretanha, França, Bélgica e Itália enquanto principais potências imperialistas na África, e toda a sua propaganda, em harmonia com a política da Internacional Comunista como um todo, foi dirigida contra eles. Mas, no início de 1935, Stalin orientava a política externa russa e a da Internacional Comunista em uma nova direção. A Rússia teve como objetivo formar algum tipo de aliança com a Grã-Bretanha e a França contra a Alemanha, Japão e Itália, e parte do preço que a Rússia teve que pagar foi a cessação da propaganda anti-imperialista. George Padmore foi informado de que a política precisava ser alterada.
O ‘The Negro Worker’ deveria pregar que os principais inimigos dos Africanos e das sociedades democráticas e progressistas do mundo eram os Fascistas, particularmente a Alemanha e o Japão; mas pregar aos Africanos que seus principais inimigos eram a Alemanha e o Japão (que não tinham colônias na África) e que a Grã-Bretanha, a França e a Bélgica deveriam ser vistas como amigas da democracia era fazer troça, não apenas de tudo o que George vinha pregando por anos, mas da situação real na África naquela época.
Muitos funcionários comunistas, a grande maioria, fizeram a mudança e seguiram a nova orientação do Kremlin. Para George foi um traição indescritível e ele se recusou categoricamente a fazê-lo.”

(Notes on The Life of George Padmore, CLR James)

As revoluções de libertação nacional na Coréia, China, Vietnã e Cuba não foram “Frentes Populares”, e não são acusadas pelo Anti-Dimitrov de o serem. O que tem que ser observado é que foram revoluções em que a posição proletária foi derrotada. De formas diferentes, nesses processos, houveram disputas de linha, e apesar de terem conseguido se consolidar sob a direção de “Partidos Comunistas”, isso não significa que a posição proletária venceu e que vemos ditaduras do proletariado nesses países. A forma do capitalismo de estado pode ser relativamente melhor que os processos de libertação nacional que não conseguiram nem isso, mas não representa o que queremos: um processo de transição do modo de produção capitalista ao modo de produção comunista.
Isso não indicia contra a revolução em países periféricos e contra a libertação nacional. Estas continuam, como indicado pelo leninismo, como capítulos da revolução proletária mundial. Mas o stalinismo, dimitrovismo e khrushchevismo agiram contra o internacionalismo proletário, em um processo multifacetado que tem a ver com a base econômico-social tanto dos países que fizeram revoluções como a dos países cuja tática comunista ficou sob domínio da estratégia da Frente Popular.
Assim, garantiu-se que as revoluções periféricas ficaram sem espaço para se desenvolver. Ou foram sabotadas, ou se realizaram tendo que recorrer à aliança com a burguesia nacional sem conseguir minar seu poder, ou realizaram a centralização estatal da propriedade afogando os órgãos de poder proletários, por necessidade, mas afogando-os de qualquer forma. Agora, temos que recolher as lições das posições proletárias derrotadas e retomar a luta a partir destas lições, mas para isso é imprescindível não deixar que a defesa desses processos contra o imperialismo se transforme em um defensismo que trata a derrota como vitória, fragilizando nosso programa comunista presente. Fragilizar os princípios do programa que estamos tentando viabilizar na nossa conjuntura deveria ser considerado fatal pra quem afirma que “devemos fazer nossa própria revolução antes de criticar a dos outros” (o que só demonstra a confusão política dessa frase).

STALINISMO NÃO EXISTE?

Para os que dizem que “stalinismo não existe, Stalin aplicou o marxismo-leninismo”: stalinismo se refere às posições teóricas e políticas do período em que se definiu um “marxismo-leninismo” oficial. Como várias das características desse ML oficial foram consolidadas no período de Lenin na União Soviética, é correto, de certa forma, dizer que Stalin “aplicou o marxismo-leninismo”. O que não encerra a questão.
Precisamos sair do abstrato. “Marx + istas” não significa “seguidores de Marx”, como “Lenin + istas” não significa “seguidores de Lenin”. Os “ismos” estão ligados aos nomes dos indivíduos porque suas contribuições teóricas e políticas sintetizaram lições que eles tomaram da realidade. Foi do estudo das tendências do capitalismo e das experiências políticas do proletariado que surgiu o “marxismo”. Foi do estudo do imperialismo, da conjuntura russa e da experiência da Revolução de Outubro que surgiu o “leninismo”. Que esses “ismos” não tenham nunca surgido da boca dos indivíduos em questão, mas de outros indivíduos que depois buscaram formular uma “síntese”, já explicita a disputa política inerente aos termos.
Só a análise concreta da realidade pode definir o que é “marxismo”. Guerras de citações e apelos de autoridade não definem nada em si. Referências às posições de Marx e Lenin fazem sentido contextualmente, quando estamos tirando das suas experiências políticas específicas lições “de caráter universal” que se aplicam à nossa situação atual (e sua aplicabilidade precisa ser demonstrada, bem como o “caráter universal” adaptado à particularidade, sem desfiguração do programa comunista). Um estudo das tendências do capitalismo que indicam um caminho ao socialismo ainda precisa ser concreto teórica e praticamente para ser “marxista”, não só fazer referência às posições clássicas de Marx. Da mesma forma, uma posição “leninista” precisa demonstrar quais são os elementos da Revolução de Outubro, da atuação política e das posições de Lenin e do Partido Bolchevique, entre outros fatores, que se sustentam como desenvolvimento do marxismo.
Isso não significa, como muitos pensam, que stalinismo não existe, e que qualquer coisa pode ser leninismo. Só é preciso demonstrar de que forma o stalinismo é um desvio do que se pode com justeza definir como leninismo enquanto desenvolvimento do marxismo. O que justifica o termo “stalinismo” é o fato de Stalin aparecer como figura central na sintetização do “marxismo-leninismo” oficial da URSS. Ele não precisa ter inventado conscientemente um “stalinismo” (novamente, o “ismo” passa pelo indivíduo referido mas não é centrado nele, e sim em processos históricos e políticos).
Que ele tenha buscado sustentar suas posições com o apelo de mero “continuador do leninismo” é exatamente o ponto, baseado na disputa de poder por quem teria legitimidade para ser o “sucessor de Lenin”, mas não só: o próprio dilema concreto da revolução russa, em que o bolchevismo e o leninismo se constituem em debate com o chauvinismo da Segunda Internacional, com o reformismo menchevique, afirmando a possibilidade da revolução proletária na Rússia e sua conexão com a revolução mundial, é a fonte de onde o stalinismo buscou legitimidade.
O stalinismo não surge da “traição de Stalin a Lenin”, surge das condições concretas da Rússia, o que não significa que as lições marxistas-leninistas que devemos tirar dessas condições concretas devam ser stalinistas, ou que possam se omitir perante o fenômeno do stalinismo. Por exemplo, o banimento do “fracionismo” e das plataformas no 10º Congresso do Partido Bolchevique (1921), em meio ao debate com a Oposição Operária, foi cristalizado pelo “marxismo-leninismo” oficial como posição de princípio. A URSS sob Stalin, sintetizando o “marxismo-leninismo”, coloca essa medida como parte da doutrina “marxista-leninista”, de modo que até hoje tanto PCs historicamente ligados à URSS pós-Khrushchev quanto maoístas e hoxhaístas ainda tomam esse ponto como princípio básico do “Partido Comunista”.
Foi uma medida estabelecida no 10º Congresso do Partido Bolchevique, sob direção de Lenin, em resposta às questões políticas da conjuntura e em consonância com os objetivos estipulados pelo leninismo: realizar a revolução proletária na Rússia e mantê-la até a revolução em outros países. Ou seja, não foi inventada por Stalin. Significa que devemos aceitá-la como leninismo?
Não! E isso pode ser respondido com a própria experiência do PCB-RR. Todo militante do PCB-RR pôde ver como o PCB-CC tentou utilizar o “princípio” do banimento do “fracionismo” como fonte de legitimidade “leninista” contra o PCB-RR, inclusive citando o 10º Congresso do Partido Bolchevique e criticando, em documento interno depois discutido publicamente, o livro O Centralismo Democrático de Lenin organizado por Gabriel Landi e Gabriel Lazzari, dizendo que “o grupo fracionista apaga da memória da produção textual de Lenin sua proposta de proibição das frações no Partido”. A esquerda do PCB fez certo em retomar o verdadeiro sentido do centralismo democrático de Lenin. E quando o fez, não foi meramente “resgatando as posições clássicas de Lenin”, mas analisando e disputando o significado político do leninismo.
A discussão não deve se basear em um lado dizendo que Lenin disse x, pegando uma citação de acordo, e o outro lado afirmando que Lenin disse y, e buscando outra citação. “Leninismo” não significa “defender Lenin em bloco”, defender como princípio toda posição tomada por Lenin, toda medida tomada pela URSS no tempo de Lenin. Desse modo, as posições do Partido Bolchevique em torno da polêmica pública, antes do 10º Congresso, podem muito bem ser compreendidas como as que melhor correspondem ao leninismo em seu sentido fundamental: desenvolvimento do marxismo nas condições da revolução proletária na Rússia, no debate contra a Segunda Internacional e o menchevismo, em suas aquisições que se possam demonstrar como de caráter universal e útil para o programa comunista da nossa realidade. Basta que se demonstre isso politicamente. E a experiência do PCB-RR o demonstra: a polêmica pública e a retomada da forte tradição de debate aberto e liberdade de crítica no Partido Bolchevique foi arma contra o menchevismo representado pelo PCB-CC.
Depois de resgatar o Centralismo Democrático de Lenin, o PCB-RR deveria resgatar o Estado e Revolução. A opinião predominante no partido sobre o livro ainda é a do “marxismo-leninismo” stalinista e dimitrovista: a “experiência concreta da revolução” teria demonstrado que a “transição socialista” não segue os princípios ali estabelecidos. O Estado permanece, e até cresce, durante a “transição”, e “não é possível iniciar a dissolução gradual do Estado enquanto existir o imperialismo”.
O stalinismo não inventou suas posições, não se iniciou quando num belo dia Stalin decidiu trair o marxismo. O “marxismo-leninismo” oficial cristaliza como princípio a atuação da URSS sob Lenin, transformando aspectos contingentes em princípios úteis à legitimação da contínua centralização do poder no Partido Bolchevique numa situação adversa (a internacionalização da revolução não acontecendo). Não basta aqui querer proteger Lenin, afirmando que o problema é que o stalinismo toma como fixas as medidas que Lenin estabeleceu como contingentes e temporárias (mesmo que esse seja um elemento importante de se discutir). O “marxismo-leninismo” stalinista se baseia nos dilemas concretos da Revolução de Outubro, e em erros concretos de Lenin, quando deixou brechas à visão de que a direção do Partido Comunista, sem os órgãos de poder proletários, poderia sustentar a ditadura do proletariado até o apoio da revolução em outros países.
É compreensível que Lenin e a maioria do Partido Bolchevique, então, tenham acreditado que as restrições às plataformas políticas no 10º Congresso, a falta de poder efetivo dos órgãos de poder proletário em contraste com o poder dos “técnicos” na economia, entre outras medidas, fossem necessárias e viáveis até o socorro da revolução em outros países. O que não é compreensível é que hoje, sabendo o que se sucedeu, demos legitimidade ao “marxismo-leninismo” que se construiu tomando como “socialismo” a consolidação do capitalismo de estado. O marxismo-leninismo pode e deve aprender com a experiência passada.
O stalinismo tem como base fundamental a virada de 1928 na União Soviética, com a industrialização acelerada e coletivização da agricultura. É a partir desse momento que o discurso oficial da União Soviética declara que se atingiu economicamente uma fase socialista, que se basearia na economia planificada, na propriedade estatal e no direcionamento do partido no poder. É conhecido que a perda de poder efetivo dos órgãos de poder proletários não começou aí (sabe-se disso, inclusive, por meio de alertas de Lenin), mas que houve um impulso da centralização do poder no Partido Bolchevique, um impulso da repressão política, e uma intensificação da exploração da classe trabalhadora, do poder dos “técnicos” e “intelectuais” no contexto dos Planos Quinquenais. É conhecido que tanto o processo de repressão política quanto de exploração do trabalho vitimou comunistas (não só a “velha guarda bolchevique”, mas militantes “comuns”) e trabalhadores. Mesmo que não nos “milhões” do Livro Negro do Comunismo, houve um escopo expressivo e politicamente relevante.
Todo mundo sabe disso, mesmo os que fingem acreditar nas teses mais absurdas do Grover Furr. A característica negacionista do stalinismo, que alguns militantes ingênuos da base de partidos stalinistas podem reproduzir como central, é mais uma forma de agitação política, formulada pelos dirigentes, para refletir uma base teórica de fundo. Essa base teórica é a justificação e ideologização desses fatos conhecidos, de diversas formas, pra defender que, apesar deles, ainda existia socialismo e ditadura do proletariado. Entendendo isso, percebemos que essa base teórica também está presente no pós-stalinismo khrushchevista e dengista, mesmo que ele seja mais sutil e apele às críticas aos “excessos”. A diferença é de ênfase: para os stalinistas anti-revisionistas, Stalin significa a “rigidez teórica e partidária” contra o revisionismo (incapaz de críticá-lo até o fim), enquanto para os revisionistas, Stalin representa a “manutenção do poder”, a “gestão” concreta do momento pós-revolução. O conceito de “socialismo” das duas correntes tem o mesmo fundamento.
Sem a crítica ao stalinismo, não somos capazes de entender a base que tornou possível o dimitrovismo: o reforço do aparelho policial de Estado como tentativa centrista de equilibrar as dinâmicas de classe divergentes do proletariado e dos quadros, “técnicos” e “intelectuais” dirigentes da produção; a perspectiva economicista de “construção do socialismo”, que colocava no crescimento das forças produtivas a chave do reforço da ditadura do proletariado, a despeito da separação da classe operária dos instrumentos do poder.
Aqui, a polêmica Ocidente-Oriente tem influência central, e Jones e Losurdo se apressariam em colocar Stalin como representação máxima do “marxismo periférico”, da ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas era o principal da transição socialista para o Oriente, já que “o marxismo ocidental via opressão na produção, enquanto o Oriente via o desenvolvimento das forças produtivas como principal fator de resistência contra a opressão nacional”, ou coisa do tipo. Na verdade, como vimos, essa perspectiva agiu contra a revolução anti-colonial, em benefício da burguesia nacional nos países periféricos, do dimitrovismo pequeno-burguês nos países europeus, e do centrismo e revisionismo que derrotou as posições proletárias nas experiências de transição.
Sem a crítica ao stalinismo, não levamos também às últimas consequências o entendimento do que significou o refortalecimento da instituição da família e a recriminalização da homossexualidade na União Soviética. Ficamos sem entender qual foi a base para esses processos e o que eles significam para a transição ao socialismo. E ficamos sem uma crítica profunda das posições LGTBfóbicas do KKE.1

ANTI-STALINISMO SOCIAL-DEMOCRATA

Aqui, não se trata de conceder ao anti-stalinismo de direita, que concede à social-democracia. Francisco Martins Rodrigues tem posição semelhante a de Rosa Luxemburgo, quando ela disse:
“Deixemos os Socialistas de Governo alemães gritarem que o domínio dos bolcheviques na Rússia é uma expressão distorcida da ditadura do proletariado. Se foi ou é assim, o é apenas porque é um produto do comportamento do proletariado alemão, em si uma expressão distorcida da luta de classes socialista. Todos nós estamos sujeitos às leis da história, e só internacionalmente é que a ordem socialista da sociedade pode ser concretizada.”
Uma crítica pela esquerda a Stalin “não é para todos”, como dizia FMR. Não se trata de conceder à crítica social-democrata ou “socialista democrática” ao stalinismo, que minimiza o papel que o cerco das “democracias capitalistas” ocidentais à URSS teve nas suas deficiências internas. A única crítica possível ao stalinismo é a crítica comunista.
Tenho acordo com o PCB-RR na análise do anti-stalinismo de direita do PCB-CC. A crítica “anti-stalinista” do PCB-CC ao “marxismo-leninismo com hífen”, representada por figuras como Mauro Iasi, José Paulo Netto, Sofia Manzano e outros, e sua proposta de “marxismo e leninismo”, que se definiria pelo “marxismo na teoria social e o leninismo na teoria da organização”, como coloca a análise de Gabriel Landi.
Quando Mauro Iasi criticava Stalin e seu “marxismo-leninismo” oficial pela “criação de uma verdade oficial e um parâmetro de julgamento do que seria o ‘verdadeiro marxismo’ na forma do ‘marxismo-leninismo”, que tem pouco ou nada a ver nem com Marx nem com Lênin”, usava o burocratismo do período de Stalin como desculpa para condenar em si a busca pela disputa entre posições revolucionárias e reformistas dentro do partido, com o objetivo de aprofundar a construção da linha revolucionária. Sabemos, hoje, que esse ecletismo é capaz de reproduzir o mesmo burocratismo que diz criticar. Ao querer que convivam pacificamente num mesmo partido as correntes revolucionárias e reformistas, essa “convivência pacífica” eventualmente exige o burocratismo para suprimir, em nome da “unidade”, os “ataques fracionistas” da esquerda às linhas direitistas.
O CC do PCB sentia necessidade de abandonar o marxismo-leninismo por causa do seu viés, inspirado em Lukács, de um “marxismo puro”, um “retorno à Marx”, criando um marxismo palatável à crítica burguesa à URSS, à social-democracia. Um marxismo que deriva também da tradição revisionista do PCB, oriunda do seu caráter de PC oficial, ligado à oficialidade da URSS, ao revisionismo khrushchevista e sua forma particular de “anti-stalinismo”, mais propriamente um pós-stalinismo. As influências de Lukács servem apenas para tingir essa tradição com algumas cores críticas, mas sem romper fundamentalmente com ela: Lukács apostava na “auto-reforma democrática” do socialismo real pós-Khrushchev; seu seguidor José Paulo Netto, em 1987, defendeu a Perestroika e a Glasnost, no artigo “Projeto Gorbatchev: mudança ou continuidade”! Não preciso nem dizer que ele também escreveu que a virada Dimitrov foi um marco positivo para a história do movimento comunista.

O MARXISMO-LENINISMO E O ESTADO E REVOLUÇÃO

No entanto, nem o PCB-CC tem o monopólio da crítica ao “marxismo-leninismo” oficial e stalinista, nem colocar um hífen no marxismo-leninismo é um antídoto absoluto contra o centrismo e o revisionismo. Dimitrov e Khrushchev eram também, no final das contas, “marxistas-leninistas com hífen”. A crítica comunista ao “marxismo-leninismo” oficial não tem tanto a ver com “quem primeiro usou o termo”, “quem colocou o hífen”, se Stalin usou mais “marxismo-leninismo” ou “leninismo”, ou dizer que todos que “colocam o hífen” estão necessariamente aderindo a esse “marxismo-leninismo” oficial. Esses pontos podem ser suficientes contra o PCB-CC, mas não esgotam a discussão crítica sobre o sentido do leninismo.
Não basta uma crítica de aspectos políticos do stalinismo, é necessário criticar sua concepção de socialismo e de ditadura do proletariado. É aqui que um resgate do “Estado e Revolução” mostra sua importância. Os princípios expostos no livro não podem ser reduzidos à “ingenuidade de Lenin pré-revolução”, posto que eles refletem as aquisições proletárias do leninismo contra o reformismo e a “veneração supersticiosa do Estado” da Segunda Internacional, e o resgate das aquisições marxistas fundamentais sobre as “bases econômicas da extinção do Estado”. Se a “experiência concreta da revolução” divergiu dessas aquisições, é imperativo para o próprio estudo concreto dessa experiência que não tomemos a necessidade como virtude, a derrota das posições proletárias como vitória, as debilidades objetivas do poder proletário como força subjetiva “do Partido” para realizar a transição socialista. O Anti-Dimitrov demonstra concretamente que os partidários do elemento subjetivo da “direção do Partido na ditadura do proletariado” não sabem demonstrar como o “Partido de Aço” sucumbiu ao revisionismo.
O Estado e Revolução demonstra que a ditadura do proletariado é inseparável da socialização da produção que permite a dissolução do Estado nos órgãos de poder proletários. A forma da repressão dos exploradores é precisamente uma organização armada das massas que progressivamente mina as bases do aparelho especial do Estado. A forma da ditadura do proletariado e da transição ao socialismo, mesmo que possamos falar do Partido Comunista como fermento político importante com o seu Programa, é a dissolução do Estado nos órgãos de poder proletários não por acaso, mas porque é a única base concreta de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista, teorizado pelo marxismo a partir do estudo das tendências do capitalismo.
Isso não significa imediatismo, como muito se distorce (“dizem que a transição não é socialista porque não aboliu imediatamente a lei do valor!”), e sim que a transição e a “direção do Partido Comunista” precisam demonstrar um caminho político verificável de acordo com essas diretrizes estabelecidas pela posição proletária. Não basta o mero fato de um “Partido Comunista” estar no poder, de uma planificação estatal da economia que não apresenta nada além da veneração supersticiosa do Estado como elemento de um “planejamento racional” e de uma “transição consciente” ao comunismo.

NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO

E não basta abandonar as concepções em torno do “Partido de Aço”, centrais para a corrente ML “anti-revisionista” do maoísmo e do hoxhaísmo, em prol do relativismo, dos vícios de PC “oficial”. Não basta dizer, como o companheiro pró-China do PCB-RR disse no debate, que admite que a China não é “puramente socialista”. Nem Xi Jinping afirma isso: o conceito de “socialismo” do “marxismo-leninismo” oficial se baseia em distorções da Crítica ao Programa de Gotha de Marx e do Imposto em Espécie de Lenin pra defender exatamente a “convivência de elementos capitalistas e socialistas na transição”. Essa formulação, por isso, é absolutamente insuficiente para encerrar a questão, e para aprofundar o debate leninista crítico. O ponto é que a China não está sob ditadura do proletariado e que não há evidência de que os “elementos capitalistas” estão regredindo.
A revolução proletária em um país periférico se justificou politicamente enquanto princípio leninista (“princípio leninista”, novamente, sendo tudo que diz respeito à posição proletária): temos lições de valor das posições proletárias nesses processos, e a humanidade estaria pior sem eles. A transição do capitalismo ao socialismo é, afinal, um processo histórico, com avanços e recuos. Não se trata de dizer que aquelas revoluções não deveriam ter sido feitas, e que o proletariado não deveria ter tentado tomar a dianteira de processos de revolução nacional, quando a burguesia nacional se mostrava incapaz de realizá-la por associação ao imperialismo. Contra o imperialismo, essas experiências devem ser defendidas. Algumas de suas conquistas são conquistas do nacionalismo revolucionário, que o leninismo explicou que é diferente do nacionalismo chauvinista dos países centrais e que faz parte da consciência proletária mundial.
O problema é esquecer que a posição comunista e proletária não é nacionalista, e confundir socialismo com a realização da soberania nacional das nações periféricas. Essa soberania é parte da luta socialista, mas confundir as duas coisas dá margem para o entendimento do país periférico como nação sem contradições internas, ou que essas contradições não interessam à posição proletária. É o entendimento que está na origem do erro de extrapolar, da correta oposição à intervenção imperialista nessas experiências, a redução de todo conflito interno que se apresenta nelas a quinta-colunismo. É a reedição do pensamento “oficialista” da Segunda Internacional, direcionado aos “países socialistas” oriundos da experiência da Terceira. Ou seja, tentando ser “mais papista que o Papa”, o “marxismo-leninismo” acaba rompendo com os princípios que nortearam a fundação da Internacional Comunista, com o bolchevismo e o leninismo.

“DISCUTIR O BRASIL”

Já debati contra essas visões dominantes no PCB (e talvez, infelizmente, no PCB-RR) em outros textos que escrevi, como “O Leninismo e a Crítica ao Programa de Gotha” (uma resposta a uma posição de Jones Manoel que voltou à tona recentemente), “O ‘problema’ do conceito de Capitalismo de Estado” e “A China está na ‘fase primária do socialismo’?”. Mais recentemente em “O apodrecimento dos Partidos Comunistas”, que acabei não enviando para as tribunas mas busca se inserir em uma discussão feita nelas, sobre FMR e o KKE. Estou aberto a qualquer debate.
Considero importante discutir todas essas questões para “discutir as questões da conjuntura, discutir o Brasil”, como tanto se apela. Toda essa discussão só faz sentido se refletir em questões da nossa militância presente. É claro que existe o risco de se perder em debates escolásticos sobre “União Soviética”, sobre o passado, mas por outro lado também existe o risco de se perder numa visão praticista de “debater o Brasil”, como se a discussão teórica e política sobre o programa comunista não fosse central pra definir como vamos debater o Brasil, e como vamos debater a conjuntura para buscar se inserir na classe trabalhadora, com todas as concepções que estão na base de toda atuação política imediata.
Em primeiro lugar, deveria chamar atenção o fato de que o debate contra as posições aqui apresentadas frequentemente tomam o caminho da distorção, consciente ou inconscientemente, sem conseguir enfrentar de frente as questões apresentadas. A distorção da questão Ocidente-Oriente, a caricatura antiga que afirma que “criticamos as revoluções por não terem abolido todas as categorias do capitalismo imediatamente”, etc. Mesmo se eu estiver completamente errado em tudo que defendo, isso deveria saltar aos olhos. Nada do que é dito aqui se sustenta, nem mesmo como preocupação legítima? Nenhum desses pontos merecem um debate honesto? É tudo perda de tempo?
Também deveria chamar atenção que a concepção dominante de socialismo no “marxismo-leninismo” oficial e esse apelo ao “pragmatismo”, à ideia de que o “socialismo como negação das categorias do capitalismo” é sempre um “imediatismo” que nos afasta das “tarefas concretas”, costuma vir acoplado às posições eleitoralistas em vários partidos. O fato de que as visões opostas muitas vezes reproduzem o mesmo conceito de socialismo talvez seja uma pista da sua insuficiência na disputa política.
As posições aqui defendidas não resultam que, na prática, vamos recusar mediação, tática e necessidade de inserção. Resultam que estas estariam subordinadas ao objetivo da independência e demarcação do programa proletário. O que significa que a intervenção nas lutas concretas precisa pensar com cuidado no perigo de substituir a nossa presença nelas, que deveria ser fator de impulso à auto-organização do proletariado, pela tentativa apressada de canalizá-las para entidades representativas e alianças parlamentares. Ou, num outro extremo, pensarmos sempre unicamente nos ganhos que nossa presença pode dar à nossa organização, como se o Partido Comunista fosse uma entidade pronta que só precisa “se inserir” e “crescer”, e não um resultado da auto-organização do proletariado culminando em um programa que viabilize a revolução proletária.
Veja como a “discussão do Brasil” precisa da discussão programática de fundo: a assimilação parcial da crítica à Frente Popular toma como neutra a “unidade de ação” que dava base à política anterior de Frente Única, mas a Frente Única também é uma política específica e a discussão crítica sobre ela é um desenvolvimento teórico necessário da crítica à Frente Popular.
Uma está ligada à outra. Não só porque a Frente Popular foi apresentada em sua época como uma forma de Frente Única, e recorrendo à autoridade indiscutível da Frente Única e da ideia de unidade de ação. Mas porque a unidade de ação pode se transformar em frentismo popular se não tivermos a clareza de que uma ação conjunta condicional pode borrar a demarcação entre comunismo e social-democracia (o contrário do que queremos), ou seja, deixar de ser condicional, a depender do tipo de acordos formados para a ação conjunta, da forma dos eventuais organismos criados, e mesmo dos tipos de reivindicação feitas em conjunto.
Mesmo “propostas de transição” com o objetivo de “desmascarar a social-democracia” podem se mostrar um tiro no pé. Ao exigir, por meio de determinadas iniciativas de ação conjunta, que os social-democratas atendam determinadas demandas, tudo está bem se essas demandas estão em consonância com nosso programa comunista independente. O problema é que essa lógica facilmente evolui para alianças políticas em que se formulam “propostas de transição” mais credíveis, intermediárias entre a posição proletária e a posição pequeno-burguesa democrática. Contribui à confusão com o pretexto de “unidade de ação”, de se inserir nas massas.
O proletariado já está em conflito com a burguesia nas suas lutas concretas, imediatas. Sejam lutas por salário, por moradia, contra a violência policial etc., as lutas por condições de vida do proletariado são desde sempre combatidas pela “democracia” burguesa. Isso é verdade mesmo que o proletariado de determinada categoria, em determinada luta, não avance para além de uma consciência setorial rudimentar, ou se essa luta for cooptada ao invés de reprimida. Porque o saldo dessa cooptação será a futura deterioração das suas condições de vida novamente. O único ganho possível para o proletariado nas lutas concretas, portanto, é o impulso à sua auto-organização, que mesmo com derrotas pontuais, serve de aprendizado para futuras e melhores iniciativas de auto-organização. Essas iniciativas são, ao mesmo tempo, a única forma efetiva de empurrar a “democracia” burguesa para sustentar as conquistas sociais, e as únicas que correspondem aos interesses reais do proletariado por uma sociedade baseada no seu poder.
Ao invés de se nortear por esses princípios, os partidários da “unidade de ação” para “disputar as bases das organizações reformistas”, como Jones Manoel, propõem medidas como o PCB-RR disputar as eleições deste ano na legenda do PSOL. Quer construir um partido que seja “o mais firme, decidido e sério organizador das lutas cotidianas”. Não distingue, porém, entre os interesses de classe do proletariado e o das bases das organizações reformistas, desorganizadas e desmobilizadas pelos seus dirigentes. O PCB-RR, então, teria que ser “o mais firme, decidido e sério organizador” das lutas populares da social-democracia pequeno-burguesa, se deslocando à direita para “ganhar as massas”.
Não conceituar corretamente o papel do partido na vida e luta da classe trabalhadora pode parecer “flexível” e “pragmático”, mas acaba nos afastando dela. É por superestimarmos o “crescimento da nossa organização” que chegamos nesse afastamento. Dessa forma, ou formulamos propostas de “unidade de ação” de caráter “popular” que em última instância são ineficientes para nossos propósitos e, se constroem alguma inserção, é para a social-democracia “radicalizada” e não para nós; ou só nos inserimos em espaços por meio de cálculos minunciosos sobre os ganhos políticos que teremos para o nosso “crescimento”, substituindo o papel do Partido Comunista por um hegemonismo mecânico. Não tem jeito, não temos atalho que não a discussão teórica e pragmática sobre nossas concepções de fundo.
Afinal, o “marxismo-leninismo” oficial, em suas diversas matizes, costuma usar o seu conceito distorcido de “socialismo” como um meio de transferir suas características ao Partido: “Justamente porque o stalinismo concebe as massas como um mero auxiliar do partido, ele coloca no centro da revolução a organização. Para o stalinismo, tudo o que diz respeito à revolução — acção política, teoria, propaganda — tudo são tarefas auxiliares, que giram à volta da organização, do poder do aparelho. Daí a inevitável tendência para o dogmatismo (só nos interessam os factos que favorecem as necessidades do centro), para o oportunismo (são boas todas as acções que reforcem o poder do aparelho), para o autoritarismo (não toleramos entraves às decisões da direcção)”.

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NOTAS
1) Nesse assunto, tenho acordo com o texto “A questão LGBT e as divergências no Movimento Comunista Internacional” de Gabriel Landi. Exceto com a afirmação de que o KKE é “uma organização revolucionária que nutre concepções profundamente errôneas”. Devemos pensar duas vezes antes de considerar “revolucionária” e com “inserção na classe trabalhadora” uma organização que reproduz uma homofobia e transfobia doentias. Das duas uma, ou essa concepção de “inserção” é infectada de interpretações vulgares do marxismo-leninismo e temos que repensá-la; ou ainda, pode ser que as posições da organização não refletem sua inserção, e então não temos diante de nós uma “organização revolucionária” mas uma organização degradada, confusa internamente e que precisa se definir. De qualquer forma, não temos absolutamente indício nenhum de “disputa interna” no KKE sobre questão LGBT e não faz sentido nenhum especular que essa discussão “deve existir e não sabemos”, só com base na ideia de que “é mecânico conceber um Partido Comunista sem disputa”, relativismo que impede qualquer crítica a qualquer partido. O centro da questão, penso eu, é que a ideia de “inserção do Partido Comunista na classe trabalhadora” deveria ser considerada incompatível com a homofobia e transfobia doentias do KKE, já que essa inserção, se corresponde à forma comunista de inserção, deveria fornecer ao Partido Comunista um entendimento mais aprofundado da classe trabalhadora, não menos.
Uma tribuna recente de Gabriel Lazzari traz um entendimento que concordo sobre a importância das lutas LGBT se referir à própria constituição do proletariado como sujeito de luta coletiva por meio da resolução positiva das suas divisões internas, ou seja, no caso em questão, combatendo a opressão anti-LGBT e não jogando-a pra baixo do tapete. Só recomendo um pouco de cuidado na passagem: “Marx e Engels recusam qualquer utopismo ‘abolicionista’/neo-Proudhoniano também na questão da família (assim como famosamente o fazem na questão do Estado). A família, assim como o Estado, tende a definhar na passagem da fase inferior (socialismo) à fase superior da sociedade comunista”.
Isso é correto, desde que acompanhado também pelo entendimento leninista do definhamento do Estado, que tentei defender nesse texto. O definhamento gradual do Estado é a forma mesma da ditadura do proletariado, portanto o definhamento da instituição da família faz parte do processo. A transição ao socialismo e suas formas políticas, então, não se verificam se um caminho político de acordo não se apresenta.
Para o posicionamento presente do Partido Comunista, isso significa que é inadequado considerar que, apesar do KKE “errar de maneira crassa” e que “devemos demonstrar com todo o rigor suas posições equivocadas em matéria de gênero, sexualidade e família, temas que não são menores” (proposta de ação que parabenizo), ele tem “posições avançadas em matéria de Aliança Popular, de estratégia, de programa, de desenvolvimento do partido no seio do proletariado e de internacionalismo proletário”, as quais também “devemos demonstrar”. Se a posição anti-LGBT do KKE não é só um “erro”, mas incompatível com o programa comunista para a abolição gradual da família na transição ao socialismo, o que devemos demonstrar é a causa da contradição entre esse anti-marxismo e as suas supostas “posições avançadas”, não separar uma coisa da outra.

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