Há 50 anos Abril trouxe a revolução


Gonçalo Franco

Cumprem-se cinco décadas sobre a revolução de 25 de Abril de 1974. Para as novas gerações, para os jovens trabalhadores, estudantes ou emigrantes, a revolução é um acontecimento muito distante. Terão muita dificuldade em entender a sua verdadeira dimensão.

Para ilustrá-lo, lembremos que a revolução aconteceu menos de 30 anos depois do fim da II Guerra Mundial e que, para um jovem, em Abril de 1974, essa Guerra, com o seu cortejo de horrores e a pilha de milhões de cadáveres acumulados, também aparecia como algo muito distante e quase esquecido.
Esta distância dos acontecimentos propicía o crescimento dos mitos e a banalidade discursiva que habitual e solenemente acontece todos os anos nesta data no Parlamento. É o momento para os militares colocarem as medalhas nos uniformes e desfilarem orgulhosamente, é o momento para a generalidade dos parlamentares, membros do Governo e os carreiristas que ocupam os aparelhos dos partidos vestirem os seus melhores fatos, colocarem um cravo na lapela (alguns haverá que farão questão de não o colocar) e todos juntos, com o olhar levemente elevado, cantarem em uníssono o hino nacional.
O jovem trabalhador com um contrato precário, um salário miserável e que não consegue ter uma casa para viver, o jovem estudante que tem que se endividar para estudar, o jovem, ou não tão jovem, que teve que emigrar, o reformado que não consegue ter 3 refeições diárias ou comprar toda a medicação que necessita, porque a reforma não dá para tanto, que não consegue ser assistido a tempo e horas quando doente, porque o SNS tem sido sacrificado no altar dos lucros da saúde privada, toda essa gente tem o direito a interrogar-se sobre o que a revolução, tão mitificada nos discursos oficiais, trouxe para as suas vidas. E, no entanto, a revolução aconteceu e é indispensável que as novas gerações a conheçam e a estudem, para tirarem as lições necessárias que permitam que um novo 25 de Abril cumpra as aspirações históricas que as passadas gerações foram capazes de formular, mas não de realizar integralmente.
Este pequeno artigo pretende apenas colocar a questão essencial do tipo de sociedade e do poder que os diversos actores sociais e políticos pretenderam realizar a seguir ao 25 de Abril de 1974.

O MFA

Um grupo de oficiais intermédios, hoje conhecidos como capitães de Abril, começou a organizar-se por questões profissionais e pelo cansaço da guerra colonial. Rápida e inevitavelmente compreenderam que questionar a guerra era questionar a ditadura. A importância desse grupo alargado de capitães era que, em tempo de guerra, eram eles que comandavam as tropas, sendo, assim, a sua vontade determinante em qualquer cenário.
Em 25 de Abril, os capitães, agora organizados no MFA, numa operação bem coordenada e quase sem violência, derrubaram o regime, aprisionando o Chefe do Governo, Marcelo Caetano, e o Presidente da República, Américo Thomaz. Em seu lugar colocaram uma Junta de Salvação Nacional (JSN) composta por oficiais superiores do Exército, da Marinha e da Força Aérea – nenhum deles tinha participado no derrube do regime. Esta Junta deveria escolher o novo Presidente da República, que, por sua vez, nomearia o Chefe do Governo. Este governaria por decretos, vigiado pela Junta. Previa-se a convocação de uma Assembleia Constituinte no prazo de 1 ano. Esta estabeleceria a forma do regime e a articulação dos seus poderes. Isto pressupunha que, durante cerca de dois anos, a JSN seria o poder superior em Portugal.
Não esqueçamos que a Junta era constituída por oficiais superiores que tinham ocupado lugares cimeiros, incluindo os de Chefe e Vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, no passado recente da ditadura. O programa a que esta Junta estava submetida era o programa do MFA1 – que se propunha:
– Eram destituídos todos os cargos de comando político no país e extintos o partido único da ditadura e as organizações de juventude e paramilitares da ditadura.
– A odiada PIDE/DGS (polícia política) era extinta, mas previa-se a sua continuação nas colónias – “No Ultramar a DGS será reestruturada e saneada, organizando-se como Polícia de Informação Militar enquanto as operações militares o exigirem;”
– Era assegurado o direito de expressão e de reunião.
– Os presos políticos eram imediatamente libertados; mas previam-se excepções.
– Sobre o direito de associação, não era reconhecido o direito à formação de partidos, mas, apenas “a formação de «associações políticas», possíveis embriões de futuros partidos políticos”.
– Era garantida a liberdade sindical, “de acordo com lei especial que regulará o seu exercício.”
– Sobre a questão da guerra colonial o programa (que nunca utilizou o termo colónia, mas, sim, Ultramar – como na ditadura) era muito tímido. Em primeiro lugar, nunca utilizou a palavra colónias, pelo contrário mantendo a designação da ditadura – Ultramar.
– Reconhecia que “a solução das guerras no Ultramar é política, e não militar;”
E em consequência propunha a “criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;” e o “Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.”Sobre a questão económica o programa era bastante vago, mencionando “como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses.” Lembremos que uma grande parte da população vivia em condições miseráveis no campo e em bairros de lata nas cidades. 25% era analfabeta. Lembremos, também, que uma grande parte da população dos campos tinha emigrado.
O programa referia ainda que a política económica “necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista;” – vale lembrar que o Capital industrial e financeiro estava extraordinariamente concentrado, em oito grupos económicos.
O programa afirmava ainda que “o Governo Provisório respeitará os compromissos internacionais decorrentes dos tratados em vigor.” Isto incluía, pois, a submissão à NATO, braço armado do Imperialismo americano na Europa.
Resumindo, este grupo de oficiais quis derrubar a ditadura para abrir a porta a “uma solução política” para o “problema da guerra do ultramar”; entretanto, a guerra colonial continuaria. Temerosamente, entregou o poder conquistado aos seus superiores hierárquicos, que não mexeram um dedo no golpe, condicionando estes a tutelar a transição para um regime democrático e com algumas preocupações sociais. No essencial, foi isso que fizeram até desaparecerem de cena com a extinção, em 1982, do Conselho da Revolução.
Está claro que os militares não podiam prever que, ao derrubar a ditadura, estavam abrindo as comportas por onde entraria a revolução.
Está também claro que a onda tsunâmica da revolução teve um enorme impacto no MFA e nos militares, fraccionando-os na dialéctica revolução e contra revolução – uns, os elementos mais reaccionários, com Spínola à cabeça, tentaram opor-se-lhe frontalmente, em sucessivos golpes, outros, arrastados pelo turbilhão revolucionário, muitos contra a sua vontade, acabaram tomando posições de simpatia com o movimento popular; outros ainda, ora apoiando-se à esquerda ora à direita, conseguiram “surfar a onda”, aguardando que esta fosse perdendo a sua força. Porém, no essencial, o MFA que derrubou o regime ditatorial nunca teve a intenção de derrubar o Estado burguês, antes foi o seu guardião, passando a ser o último reduto da ordem burguesa.

A BURGUESIA

Os grandes grupos económicos, que tinham crescido sob a protecção da ditadura, que lhes assegurava mão-de-obra barata e disciplinada no continente e quase escrava nas colónias, além de acesso favorável, protegido das burguesias mais fortes, às matérias-primas e aos mercados coloniais – de repente sentiram o tapete fugir-lhes debaixo dos pés.
Politicamente, com a queda do governo e a extinção de todo o aparelho político da ditadura, a burguesia ficou decapitada. Restavam apenas algumas organizações à volta da “ala liberal” do partido único, à volta da Igreja Católica e a própria Igreja e as administrações dos grandes grupos económicos. Se bem que, num primeiro momento, tivesse saudado o MFA – a tibieza do seu programa e as caras da Junta de Salvação Nacional eram razão de alguma esperança no futuro – rapidamente sentiu, nas suas empresas e nas ruas, que o 25 de Abril tinha, sem o pretender, soltado uma “força” muito maior que uma simples mudança de regime – a Revolução! A vontade, os desejos de milhões de trabalhadores estavam em marcha, e os jovens capitães e até os velhos generais não inspiravam à nossa burguesia muita confiança em que pudessem travar essa onda, que não parava de crescer.
Rapidamente começou a fuga de capitais, a desorganização da economia, o financiamento de todos aqueles que pudessem ser uma tábua de salvação, desde partidos “democráticos” (PPD, CDS, até o PS) até organizações terroristas (ELP e MDLP) e elementos marginais dispostos a espalhar o terror e o caos. Politicamente foram criados o PPD e o CDS, onde se juntaram alguns quadros do antigo regime com políticos e universitários de pendor mais liberal.
O CDS nasceu demasiado tarde, em 19 de Julho de 1974.
Dois meses durante uma revolução são uma eternidade, e o CDS exalava ainda um odor demasiado bafiento ao antigo regime, sendo o seu dirigente máximo tido como um antigo delfim de Marcelo Caetano, o chefe do Governo derrubado. Assim sendo, acabou por ficar de fora de todos os Governos Provisórios, e, por isso, teve um papel marginal durante todo esse período.
O PPD (actual PSD), desde o seu início, 2 semanas após o 25 de Abril, o partido mais forte da burguesia, nasceu e entrou no I Governo pós-25 de Abril – como tal, era uma garantia inequívoca de que o capitalismo, a sociedade burguesa, eram para continuar, embora sob outras vestes e, principalmente, com outro discurso.
A onda revolucionária era tão forte, a vontade de transformação socialista tão presente, que o PPD, no seu programa original, aprovado no 1º congresso, em 23 e 24 de Novembro de 1974, escassos 5 meses antes das eleições para a Assembleia Constituinte, escrevia o seguinte:
Liberdade, igualdade e solidariedade são os grandes ideais do socialismo e realizam-se na democracia. Não há verdadeira democracia sem socialismo, nem socialismo autêntico sem democracia.”2
E mais adiante:
O Partido Popular Democrático pretende reunir todos os que aceitam os ideais do socialismo e procuram realizá-los pela construção da democracia, independentemente da sua crença religiosa ou formação filosófica. A sua unidade baseia-se em ideais e objectivos políticos comuns e consolida-se na prática quotidiana da luta pela democracia e pelo socialismo.”3
Hoje, quem leia estas frases com certeza pensará que ou o PSD actual é outro partido ou o PPD/PSD ocupa certamente lugar muito cimeiro entre os maiores mentirosos e defraudadores da história. Podemos assegurar que é o mesmo partido e que, já em 1974, o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (curiosamente ou talvez não, o nome de Marcelo deve-se ao seu padrinho – sim, esse mesmo, Marcelo Caetano), era um seu militante destacado.

OS TRABALHADORES E OS SEUS PARTIDOS

Tendo MFA derrubado o regime, o chefe deste, Marcelo Caetano, apenas pediu aos capitães que o poder não caísse na rua. O MFA solicitamente foi buscar o General Spínola, o homem que no passado tinha sido o Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, comandado o exército colonial na Guiné e, em jovem, voluntariamente estado ao lado dos Nazis na frente russa, no cerco de Leninegrado.
O poder estava, pois, entregue a uma Junta de Generais sob o controlo do MFA. Havia, contudo, um elemento da sociedade que não tinha sido convidado a participar. Pelo contrário: tinha-lhe sido explicitamente pedido que ficasse em casa – o Povo, a população trabalhadora. Acontece que o “convite” para ficar em casa não foi aceite, e, no próprio dia 25 de Abril, os trabalhadores saíram à rua para apoiar os militares com gritos de vitória, mas também com comida e gestos de confraternização e a querer ir muito além do que estava escrito no programa do MFA – assim, os presos políticos foram imediatamente soltos, a sede da PIDE foi cercada e os partidos políticos apareceram à luz do dia.
Poucos dias depois, dão-se as gigantescas manifestações do 1º de Maio.
Mário Soares, líder do PS, impressionado com a dimensão e o vigor destas manifestações, terá comentado, logo nesse mesmo mês, ao ministro dos negócios estrangeiros britânico, que a direita não teria força nem para aplicar um contragolpe nem para se erigir numa força política viável4 .
Os trabalhadores começaram, pois, imediatamente a tomar o destino nas suas mãos, sem esperar que a Junta, o MFA, o Governo Provisório e até os partidos que eles consideravam como seus (PS e PC), resolvessem os seus problemas. Multiplicaram-se as lutas, greves e ocupações de empresas para a melhoria das condições de trabalho e de vida, muitas vezes para proteger as empresas, os seus equipamentos e tesourarias da sabotagem dos patrões; multiplicaram-se as ocupações de casas e prédios devolutos, para sua utilização como habitação de moradores de bairros de lata ou como equipamentos sociais, como creches. Multiplicou-se a formação de comissões de trabalhadores e de moradores, os velhos sindicatos da ditadura foram ocupados, as suas direcções destituídas e os novos sindicatos massificaram-se.
Em África os soldados não aguardaram que fossem criadas “condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino”, como preconizava o programa do MFA; recusaram-se a continuar a guerra e começaram imediatamente a confraternizar com os combatentes das guerrilhas de libertação.
Simultaneamente, no continente, os jovens recusavam-se a embarcar para as colónias – qualquer hipótese de solução neocolonial para “o problema ultramarino” ficou à partida impossibilitada.
O PS e o PC, que, a 25 de Abril, teriam algumas dezenas (PS) ou poucos milhares (PC) de militantes, cresceram rapidamente, para integrarem dezenas de milhares de trabalhadores.

PARTIDO SOCIALISTA

Mário Soares chega a 28 de Abril a Portugal e, logo à chegada, ainda na estação de Santa Apolónia, declara que a solução de todos os problemas do país exigia a “unidade de todas as forças democráticas sem descriminações de qualquer espécie”.5 Perguntado por uma jornalista se achava que estaria ao lado de Spínola, Mário Soares responde que, sem nenhuma dúvida, estará ao seu lado e acrescenta que “o general Spínola é um militar corajoso e respeitado que acaba de ter um papel fundamental no pronunciamento das forças armadas, é credor portanto de todo o nosso reconhecimento pelo acto histórico que acaba de realizar”.6
Estava, pois, definido o seu programa – unidade com todas as forças democráticas (incluindo os partidos burgueses democráticos), reconhecimento e apoio à Junta de Generais, incluindo a fantasia do suposto “papel fundamental” que o General Spínola teria acabado de ter.
Valerá a pena recordar, e a história confirma-o, que a unidade com a burguesia, mesmo a mais democrática, só e possível respeitando a ordem burguesa.
Por outro lado, esta ordem burguesa é, natural e inevitavelmente, tão importante para a burguesia, que esta está disposta a deitar a democracia borda fora se for esse o preço a pagar para a manter.
Embora na declaração de princípios aprovada no seu I Congresso, em Dezembro de 1974, o PS afirmasse:
“Considerando a revolução socialista como marco fundamental na história da humanidade, o Partido Socialista propõe um socialismo que acolha e desenvolva o pluralismo, no respeito da dignidade do homem, na prática da livre crítica, no exercício da cidadania e na organização de um Estado de Direito.7 e, mais adiante: “Inscrevendo-se contra os modelos burocráticos e totalitários que, por razões históricas e contraditoriamente à inspiração essencial do marxismo, o socialismo seguiu em certos países.”8 e embora dezenas de milhares de militantes do PS e trabalhadores socialistas gritassem pelas ruas do país “Partido Socialista partido marxista!”, a verdade é que Mário Soares nunca pretendeu uma sociedade socialista.
Desde o primeiro dia contra ela conspirou, primeiro com as chancelarias dos países europeus que tinham partidos filiados na II Internacional, depois com os sectores mais reaccionários da Igreja, com o Embaixador Carlucci dos EUA, por fim, já na maré vazante da revolução, acabou por “meter o socialismo na gaveta” e governar abertamente contra as conquistas da Revolução, convidando para seu parceiro no Governo o CDS. Mais tarde, apadrinhou o regresso das famílias detentoras, na ditadura, dos grandes grupos económicos, que, na sequência do golpe malogrado de 11 de Março de 1975, tinham sido expropriadas, e assegurou-lhes os meios para elas reconstruírem os seus “Impérios”.

PARTIDO COMUNISTA

Álvaro Cunhal chega a Lisboa dois dias depois, a 30 de Abril. O cenário, desta vez, é o aeroporto de Lisboa. Ainda antes de sair das suas instalações, ao ser interrogado sobre o que quereria transmitir ao país, responde: “Confiança, confiança em que o nosso povo, em aliança com os militares de 25 de Abril, conduzirão o nosso país pelo caminho da liberdade, da democracia, da paz”9
Quando algum jornalista insistiu, a resposta foi: “neste momento o futuro do nosso país está nas mãos de todos os portugueses que desejam pôr definitivamente fim aos restos do fascismo e assegurar ao nosso povo a independência, a paz e a liberdade.”10 Nem uma palavra sobre socialismo.
Álvaro Cunhal foi directamente do aeroporto para o palácio da Cova da Moura para se encontrar com o General Spínola e, dezasseis dias depois, entraria no 1º Governo Provisório como ministro sem pasta, tendo o PCP ocupado também o ministério do trabalho.
O PCP, o único partido organizado quando se dá o 25 de Abril, com três ou quatro mil militantes, com extenso apoio e simpatia nas cinturas industriais de Lisboa e Setúbal e, também, junto ao proletariado rural alentejano, aceitou, pois, participar num governo com representantes directos da burguesia e com os militares. O seu papel seria ajudar a suster a revolução, aquela que Mário Soares tinha pressentido no 1º de Maio e de que tinha dado o alerta, já em Maio, ao governo britânico.
Vejamos:
Logo no dia 25 de Abril, através da direcção regional de Lisboa, o PCP tinha apelado a formar “por todo o lado comissões para dirigir a vossa luta por estes objectivos” (sendo os objectivos os oito pontos da “revolução democrática e nacional).11
No mesmo dia, um comunicado do Comité Central do PCP conclama a necessidade de “nas fábricas, escolas quartéis” “promover reuniões, organizar mais e mais comissões, realizar manifestações e greves, conquistar as ruas!”12
Entretanto, Cunhal chega a 30 de Abril, reúne-se com Spínola nesse mesmo dia – as manifestações colossais do 1º de Maio dão-se no dia seguinte, e Cunhal expressa, no seu discurso no Estádio 1º de Maio, a vontade de fazer parte do Governo e o seu apoio à Junta de Salvação Nacional.
A partir daí desapareceram os apelos à auto-organização dos trabalhadores. Ao invés, na primeira página do primeiro Avante! legal, publicado a 17 de Maio, um dia após a formação do 1º Governo Provisório, o PCP escreve:
“Este é aliás um dos pontos da estratégia enunciada pela Intersindical, que, embora considerando que o “melhoramento geral do nível de vida do Povo português é uma necessidade imediata”, se opõe a um extravasamento da luta reivindicativa que só poderia servir as forças da reacção”.13
O PCP passa então a estar na linha da frente contra as greves que surgem por todo o país, caluniando quem as dirige, chegando a dizer que eram organizadas pelos patrões e pelas multinacionais.
A 1 de Junho, o PCP e a Intersindical organizam uma manifestação contra as greves no Parque Eduardo VII, onde fala o ministro do trabalho (dirigente do PCP), que agradece, em nome do Governo, a realização da manifestação. A 7 de Junho, quando as greves tinham diminuído um pouco, o Avante! considera que o seu fim daquelas significou “a primeira derrota da contra-revolução”.14 Por fim, em Agosto, é aprovada pelo Governo Provisório a lei da greve, que ficou conhecida entre os trabalhadores e grevistas como “lei anti greve”. Entre outras pérolas, a lei autorizava o lock-out patronal, proibia a greve política e de solidariedade e só permitia que a greve fosse decretada pelas comissões sindicais ou, na sua ausência, por assembleias de trabalhadores que, entre outras regulamentações, teriam que ser realizadas na presença de um delegado do ministério do Trabalho (!).
O PS, que procurava ganhar uma base operária, aproveitando-se da política reaccionária do PCP, criticou esta lei. O PCP saiu em sua defesa, atacando o PS em editorial do Avante! de 6 de Setembro de 1974.15
Não vamos analisar toda a actuação do PCP durante a revolução, mas lembrar somente que, quando do golpe termidoriano do 25 de Novembro, ele deu ordens aos seus militantes para recolherem a casa. A seguir, continuou participando no VI Governo provisório.

A REVOLUÇÃO NO IMPASSE

Temos, portanto, uma situação em que os trabalhadores se auto-organizam, se manifestam, fazem greves e ocupam empresas, exigindo os seus direitos e dando os primeiros passos no caminho do controle operário.
Por todo o lado, cresce a aspiração a uma sociedade socialista, que os trabalhadores instintivamente entendem como uma sociedade em que serão eles os protagonistas. Temos, por outro lado, um Estado muito diminuído e fragilizado no seu poder repressivo:
– A GNR e a PSP estavam paralisadas e eram em geral odiadas ou, no mínimo olhadas com desconfiança pelo povo;
– O Exército e o CopCon (o comando das unidades do exército operacionais e capazes de intervir) eram também impotentes, uma vez que, sucessivas vezes, contrariando as ordens do Governo e das suas chefias, nas quais se destacava Otelo, os soldados acabavam por confraternizar com os trabalhadores contra os quais eram enviados e que deviam reprimir.

O caminho para a vitória dos trabalhadores, para o seu auto-governo, para o fim do capitalismo e para o início da construção do socialismo parecia certo.
Acontece que, nem o Governo, nem a Junta, nem o MFA, nem o PS, nem o PCP e muito menos o PPD/PSD tinham como objectivo derrubar a sociedade capitalista e permitir que os trabalhadores e as suas organizações assumissem o poder.
Independentemente dos seus programas, e nessa altura até o PPD/PSD falava de Socialismo, todos afirmavam que queriam preservar a ordem (burguesa!) e o Estado de Direito (também burguês!); e, no fim de contas, todos agiram em conformidade. Só assim se explica que algo, o Socialismo, que tantos ambicionavam, lutando nas ruas, nos bairros e nas empresas, e que até nas eleições de Abril de 1975 exprimiram com claridade16 , não tivesse triunfado

O GRANDE AUSENTE – UM PARTIDO REVOLUCIONÁRIO

É curioso comparar o trajecto de Cunhal com o de Lenine no início das revoluções portuguesa e russa.
Ambos entraram nos seus países em Abril – as semelhanças terminam aí. Cunhal foi directamente ao “palácio do poder” para ser recebido pelo General Spínola, calou os apelos à auto-organização dos trabalhadores, solicitou a entrada no Governo juntamente com o partido da burguesia e os Generais e apelou à união de todos os democratas e patriotas na defesa da democracia, liberdade e paz. Justificou a sua entrada e apoio ao 1º Governo Provisório com a necessidade de unidade contra a reacção.
Lenine, ainda no seu exílio na Suíça, impedido de regressar à Rússia, escreve insistentemente ao Partido Bolchevique, defendendo a necessidade de não dar qualquer apoio ao Governo Provisório – são as hoje conhecidas “Cartas de Longe”.
Logo na 1ª carta, Lenine escreve:
“Quem diz que os operários devem apoiar o novo governo no interesse da luta contra a reacção do czarismo (e é isso o que dizem, aparentemente, os Potréssov , os Gvózdev , os Tchkhenkéli e também, apesar de toda a sua posição evasiva, Chkheidze) é um traidor aos operários, um traidor à causa do proletariado, à causa da paz e da liberdade.”17
E mais adiante:
“Não, para uma verdadeira luta contra a monarquia czarista, para uma verdadeira garantia da liberdade, não somente em palavras nem com promessas dos charlatães Miliukov e Kérenski, não são os operários que devem apoiar o novo governo, mas este governo que deve apoiar os operários! Pois a única garantia de liberdade e da destruição do czarismo até ao fim é armar o proletariado, é consolidar, alargar, desenvolver o papel, a importância e a força do Soviete de deputados operários.”18
A 3 de Abril, Lenine regressa finalmente à Rússia e desembarca Petrogrado, no bairro operário de Vyborg, na estação da Finlândia. Tem à sua espera trabalhadores, militantes bolcheviques e, em nome do soviete de Petrogrado, os mencheviques Chkheidze e Skobolev, que lhe dão as boas-vindas e expressam votos de que ele se junte ao conjunto da “democracia revolucionária” em defesa da revolução.
Lenine não perde tempo. Dirigindo-se aos trabalhadores que se aglomeravam para o receber, responde ao apelo dos dirigentes do soviete, afirmando que a revolução de Fevereiro não tinha resolvido os problemas essenciais dos trabalhadores e que estes não podiam ficar a meio-caminho, mas, pelo contrário, em aliança com a massa de soldados, transformariam a revolução democrática burguesa numa revolução socialista. Terminou dando um “Viva a revolução socialista mundial”.19
Da estação da Finlândia, Lenine não saiu para a sede do Governo, mas para uma das sedes do Partido Bolchevique, onde começou uma árdua batalha para corrigir a linha do partido, cuja direcção se inclinava para um apoio crítico ao Governo Provisório.
Não está clara a diferença entre Cunhal e Lenine, não está clara a diferença entre o PCP de 1974 e o Partido Bolchevique de 1917?
Não é evidente que, querendo a esmagadora maioria dos trabalhadores o socialismo, este não se concretizou porque faltou um partido que pudesse unir e dar direcção à massa maioritária de trabalhadores, que pretendia uma mudança radical da sociedade e não apenas uma mudança de regime?
A maioria dos trabalhadores desejava uma nova sociedade. Com enorme generosidade, energia e entusiasmo, começaram a dar os primeiros passos para que esta se pudesse realizar. Tinham, todavia, demasiadas forças contra eles e a favor da velha ordem burguesa. Sem surpresas e em primeiro lugar, a burguesia, o PPD/PSD, o CDS, a Igreja, os capitalistas europeus e americanos. Mas também o MFA, que tinha conquistado o poder em 25 de Abril, e, ainda, o PS e o PCP.
Curiosamente, se atentarmos às declarações iniciais com que apresentaram ao país as suas intenções, o MFA no seu programa, o PS e o PCP com as primeiras declarações de Mário Soares e Álvaro Cunhal nas chegadas a Portugal, nenhum deles escondeu que não tinha qualquer intenção de ultrapassar a ordem burguesa. Mais tarde, arrastados pela onda revolucionária, para não serem destruídos por ela, vão ser obrigados a falar em socialismo ⎼ até o PPD/PSD era “socialista”!
O socialismo entrou nos discursos, nos programas dos partidos e até na Constituição. Foi o preço a pagar para conter o movimento dos trabalhadores e, a seguir a Novembro de 1975, paulatinamente ir reconstruindo o Estado e a sociedade burguesa.
Os trabalhadores tinham demasiadas forças contra si, e faltava-lhes a ferramenta de um Partido Revolucionário, tal como Marx o definira no Manifesto do Partido Comunista, referindo-se aos comunistas e ao que os diferenciava dos outros partidos dos trabalhadores: “nas diversas lutas nacionais dos proletários eles acentuam e fazem valer os interesses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado todo, e pelo facto de que, por outro lado, nos diversos estádios de desenvolvimento por que a luta entre o proletariado e a burguesia passa, representam sempre o interesse do movimento total.”20

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NOTAS
1) Programa do MFA ver https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/textos/04.htm
2) Programa do PPD ver ponto 1.2 da Introdução https://www.psd.pt/sites/default/files/2020-09/programa-partido-1974.pdf
3) Idem
4) Ver https://observador.pt/especiais/mario-soares-como-portugal-passou-da-revolucao-a-democracia/
5) Ver https://arquivos.rtp.pt/conteudos/regresso-de-mario-soares/
6) Idem
7) Ver em “Partido Socialista – Alguns Pontos do Programa” https://ps.pt/wpcontent/uploads/2021/03/1975.25.abr_A.Constituinte_Vota.PS_Alguns.Pontos.do_.Programa.do_.PS_.Aprovado.em_.dez_.1974.pdf
8) Idem
9) Ver https://arquivos.rtp.pt/conteudos/regresso-de-alvaro-cunhal/
10) Idem
11) “Ao Povo da Região de Lisboa” declaração da DORL do PCP em 25 de Abril – Centro de Documentação 25 de Abril, Fundo de Comunicados e Panfletos/PCP – citado a partir de RAQUEL VARELA “A História do PCP na Revolução dos Cravos” Bertrand 2011, pág. 45.
12) “Portugueses e Portuguesas” declaração da Comissão Executiva do Comité Central do PCP em 25 de Abril – Comunicados do CC do PCP, Abril/Dezembro de 1974, Lisboa Edições Avante!, 1975 – citado a partir de RAQUEL VARELA “A História do PCP na Revolução dos Cravos” Bertrand 2011, pág. 45 e 46.
13) Citado a partir de RAQUEL VARELA “A História do PCP na Revolução dos Cravos” Bertrand 2011, pág. 42.
14) “Caminho difícil mas imperioso”, Avante!, Série VII, de 7 de Junho de 1974, pág.1 – Citado a partir de RAQUEL VARELA “A História do PCP na Revolução dos Cravos” Bertrand 2011, pág.60.
15) “O Sentido das Responsabilidades”, Avante!, Série VII, de 6 de Setembro de 1974, pág.2 – Citado a partir de RAQUEL VARELA “A História do PCP na Revolução dos Cravos” Bertrand 2011, pág.99.
16 – Os partidos tradicionais de esquerda tiveram cerca de 57% de votos, se aqui juntarmos o PPD/PSD que, lembramos, clamava pelo socialismo, teríamos que mais de 80% da população votou a favor do socialismo.
17) Lenine Cartas de Longe (1ª Carta de Março de 1917) ver https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/03/20.htm (versão portuguesa corrigida)
18) Idem
19) Para uma descrição da chegada de Lenine a Petrogrado ver ALEXANDER RABINOWITCH “Prelude to Revolution – The Petrograd Bolsheviks and the July1917 Uprising”, 1968 Indiana University Press pág.37, NIKOLAI NIKOLAEVICH SUKHANOV “The Russian Revolution” 1984 Princeton University Press pág 273 e 274.
20) Manifesto do Partido Comunista ver https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/manifesto.pdf

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