Lenine (e outros) sobre a revolução e sobre o capitalismo de Estado


Ana Barradas

Este é um estudo sobre as posições de Lenine e outros seus conterrâneos acerca da revolução na Rússia e no mundo. Com ele tento provar que, enquanto ele foi vivo, estava posta de lado qualquer hipótese de construção do socialismo em termos nacionais.

Assim reforço a ideia de que, entrado na era stalinista, o Partido acabou por enterrar as ideias de Lenine e fabricou a nova teoria do socialismo num só país, assim transfigurando o capitalismo de Estado – definido por Lenine – na chamada “transição para o socialismo”, que terminou com a desastrosa rendição ao capitalismo em 1991.

Lenine afirmou com frequência e consistentemente que o regime soviético não poderia sobreviver se não surgissem em seu socorro outras revoluções proletárias, particularmente na Europa. Persistiu nesta ideia com firmeza, inclusive depois de transcorridos muitos anos sem que surgisse uma confirmação à sua esperança.

Esta sua ideia era antiga, não lhe ocorreu pela primeira vez naqueles dias do Outubro vermelho. Já em 1905, ao analisar a correlação das classes durante o curso da revolução daquele ano, caracterizava assim a situação que poderia desenhar-se no futuro: “O proletariado já está lutando para preservar as conquistas democráticas pela causa da revolução socialista. Esta luta será quase desesperançosa para o proletariado russo sozinho, e a sua derrota será inevitável… se o proletariado socialista europeu não sair em ajuda ao proletariado russo… Nesta etapa, a burguesia liberal e o campesinato abastado (mais uma parte do médio) irão organizar uma contra-revolução. O proletariado russo mais o proletariado europeu irão organizar a revolução. Nestas circunstâncias, o proletariado russo pode ganhar uma segunda vitória. A causa então não está perdida. A segunda vitória será a revolução socialista na Europa. Os operários europeus irão nos mostrar ‘como é que se faz’”. (1905)

Em Abril de 1906, declarou: “A Revolução Russa tem forças suficientes para vencer. Mas não tem forças suficientes para manter os frutos da sua vitória… pois num país com um enorme desenvolvimento da indústria de pequena escala, os produtores das mercadorias de pequena escala, entre eles o campesinato, irão inevitavelmente se voltar contra o proletariado, quando passarem da liberdade para o socialismo… Para impedir uma restauração, a Revolução Russa precisa não de uma reserva russa; precisa de ajuda do exterior. Há tal reserva no mundo? Há: o proletariado socialista no Ocidente”. (1906)

Bastantes anos mais tarde, Lenine, ao deixar Zurique de regresso à Rússia, às vésperas da revolução de 1917, numa carta de despedida aos operários suíços afirmou: “A Rússia é um país camponês, um dos mais atrasados países europeus. Aqui o socialismo não pode ser imediatamente vencedor, mas o caráter camponês do país, com enormes extensões de terra nas mãos da nobreza, permanece intacto, e pode, com base na experiência de 1905, dar um enorme escopo para a revolução democrático-burguesa na Rússia e tornar a nossa revolução um prólogo para a revolução socialista mundial, um passo na sua direção”. (1917)

O internacionalismo de Lenine não se expressava apenas no facto de dar sempre o primeiro lugar à situação internacional nas suas apreciações sobre a revolução socialista. Ele considerava a própria conquista do poder na Rússia como o incentivo para a revolução europeia, algo que, como sempre repetia, iria ter muito mais importância para o destino da humanidade do que a revolução na Rússia. Censurava com sarcasmo os bolcheviques que não entendiam o seu dever internacionalista: “Adoptemos uma resolução de simpatia para com os insurrectos alemães”, zombava, “e rejeitemos a insurreição na Rússia. Será um internacionalismo genuinamente razoável!”

Teses de Abril: “Os revolucionários russos, apoiando-se nos ombros de toda uma série de gerações revolucionárias na Europa, têm o direito de ‘sonhar’ que terão sucesso em ‘realizar com uma perfeição nunca antes vista, toda a transformação democrática, todo o nosso programa mínimo… E se isto acontecer – então… a conflagração revolucionária irá incendiar a Europa… O operário europeu se insurgirá por sua vez e nos mostrará ‘como é que se faz’; então a revolta revolucionária da Europa terá um efeito retroactivo sobre a Rússia e a época de vários anos revolucionários tornar-se-á uma época de várias décadas revolucionárias”. (Abril de 1917)

A resolução de Lenine ratificada pela conferência de Abril diz: “O proletariado da Rússia, entrando em acção num dos mais atrasados países da Europa, entre as massas de uma população de pequenos camponeses, não pode fixar para si uma realização imediata da transformação socialista. A impossibilidade de uma transformação socialista independente na Rússia camponesa em caso algum nos dá o direito de renunciar à conquista do poder, não apenas pela causa das tarefas democráticas, mas também em nome de ‘uma série de passos praticamente amadurecidos rumo ao socialismo’, como a nacionalização da terra, controle sobre os bancos, e assim por diante. Medidas anticapitalistas podem receber um desenvolvimento posterior graças à presença de premissas objectivas de uma revolução socialista no mais altamente desenvolvido dos países avançados. Este deveria ser o nosso ponto de partida. Falar apenas de condições russas é um erro. Que tarefas surgirão ao proletariado russo no caso de um movimento mundial nos colocar face a face com uma revolução social ? Esta é a principal questão de que se ocupa esta resolução”. (Abril de 1917)

Na conferência municipal geral de Kiev precedente ao II congresso do partido, o orador principal, Gorovitz, disse. “A luta pela salvação de nossa revolução só pode ser travada numa escala internacional. Duas perspectivas estão diante de nós: se a revolução vencer, criaremos um Estado transicional para o socialismo, se não, tombaremos sob o poder do imperialismo internacional”. (1917)

 Na conferência do partido em Petrogrado, em 16 de julho de 1917, Kharitonov, um dos bolcheviques que vieram com Lenine no “comboio blindado”, declarou: “Estamos dizendo em toda a parte que se não houver uma revolução no Ocidente, a nossa causa está perdida”. Kharitonov não é um teórico; é um típico agitador do partido. Nas actas da mesma conferência, lemos: “Pavlov chamou a atenção para a proposição geral apresentada pelos bolcheviques que a Revolução Russa irá florescer apenas quando for apoiada pela revolução mundial, que é concebível apenas como uma revolução socialista”. Dezenas e centenas de Kharitonovs e Pavlovs desenvolveram a ideia fundamental da conferência de Abril. Nunca entrou na cabeça de ninguém se opor a ela ou corrigi-la.

O sexto congresso do partido, ocorrido em Julho-Agosto de 1917, definiu a ditadura do proletariado como uma conquista do poder pelos operários e camponeses pobres. “Apenas estas classes… irão na realidade promover o desenvolvimento da revolução proletária internacional, que deve pôr um fim não apenas à guerra mas também à escravidão capitalista”. 

O discurso de Bukharin foi construído na ideia de que uma revolução socialista mundial é a única saída para a ordem existente. “Se a revolução na Rússia vencer antes de a revolução estourar no Ocidente, teremos que… acender o fogo da revolução socialista mundial”. 

Staline punha a questão quase do mesmo modo: “Chegará o momento em que os operários irão levantar-se e unir-se em torno das camadas pobres do campesinato, levantar a bandeira da revolução proletária, e abrir a era da revolução socialista no Ocidente”. (Julho-Agosto de 1917)

Numa conferência regional de Moscovo que se reuniu no início de Agosto de 1917, o relatório principal, expondo as decisões do sexto congresso, Sokolnikov, membro do Comité Central, disse: “É preciso explicar que a Revolução Russa deve tomar a ofensiva contra o imperialismo mundial ou ser destruída, estrangulada pelo mesmo imperialismo”. Vários delegados se expressaram no mesmo sentido, por exemplo, Vitolin: “Precisamos estar prontos para a revolução social, que será o estímulo ao desenvolvimento da revolução social na Europa ocidental”. O delegado Flyelensky: “Se decidirmos a questão dentro dos limites nacionais, então não temos saída. Sokolnikov disse com razão que a Revolução Russa irá vencer apenas como uma revolução internacional… Na Rússia, as condições ainda não estão maduras para o socialismo, mas se a revolução começar na Europa, então iremos seguir a Europa ocidental”. Stukov: “A proposição de que a Revolução Russa só vencerá como uma revolução internacional não pode estar sujeita a dúvidas… A revolução socialista só é possível numa escala mundial geral”. (Agosto de 1917)

Lenine: “Não há poder na Terra que possa impedir os bolcheviques, se eles não se deixarem intimidar e conseguirem tomar o poder, de mantê-lo até a vitória da revolução socialista mundial”.

Após o congresso do partido, no início de Agosto, Piatakov disse numa nova conferência em Kiev: “Desde o próprio início da revolução, afirmamos que o destino do proletariado russo é completamente dependente do curso da revolução proletária no Ocidente… Assim, estamos entrando na etapa da revolução permanente”. Comentando o relatório de Piatakov, Gorovitz declarou: “Estou em completo acordo com Piatakov na sua definição de nossa revolução como permanente”. Piatakov: “A única salvação possível para a Revolução Russa está numa revolução mundial que lançará as bases para a transformação social”. 

Lenine: “Dizem que não manteremos sozinhos o poder etc. Mas não estamos sozinhos. Diante de nós está a Europa. Precisamos começar”. (Novembro de 1917)

Logo após a revolução, numa nova etapa da luta interna do partido, Lenine lembrou durante um debate no comité de Petrogrado que “temia o oportunismo do lado dos internacionalistas unificadores, mas isto foi dissipado. No nosso partido, contudo, certos membros (do Comité Central) não concordaram. Isto entristeceu-me profundamente”. Os “internacionalistas” no Comité Central eram Ioffe, o futuro embaixador em Berlim, Uritsky, futuro chefe da Tcheka em Petrogrado, e Sokolnikov, o futuro inventor do Tchervonets [as grandes moedas de ouro que vieram substituir o antigo rublo]. Lenine liderou o ataque nessa reunião do Comité Central. Esses três membros tomaram o seu partido um após outro. Os seus adversários eram dois velhos bolcheviques, os mais próximos de Lenine no passado: Zinoviev e Kamenev, com quem travou nessa reunião uma polémica apaixonada. Era a eles que Lenine se referia quando disse “isto entristeceu-me profundamente”. Ele desejava que no CC houve plena consciência de que os destinos da revolução russa dependiam em grande parte da conjuntura internacional, que poderia ou não jogar a seu favor. A resolução final, escrita às pressas por Lenine, era muito imperfeita na composição, mas não obstante deu firme apoio ao decurso dos acontecimentos rumo à insurreição. “O Comité Central reconhece que tanto a situação internacional da Revolução Russa (a insurreição da frota alemã, a extrema manifestação do crescimento por toda a Europa de uma revolução socialista mundial, e também da ameaça de paz entre os imperialistas com o objectivo de estrangular a revolução na Rússia), e a situação militar (a indubitável decisão da burguesia russa e Kerensky e companhia de entregar Petersburgo aos alemães) – tudo isto em ligação com a insurreição camponesa e a reviravolta da confiança popular para nosso partido (as eleições em Moscovo), e finalmente a óbvia preparação de um segundo ataque kornilovista (a retirada das tropas de Petersburgo, deslocamento de cossacos para a capital, o cerco de Minsk com cossacos etc.) coloca a insurreição armada na ordem do dia.”(…) (1917)

Lenine explicou em Janeiro de 1918: “Se não tivesse sido pela guerra teríamos visto uma união dos capitalistas de todo o mundo, uma consolidação com base na luta contra nós”. “Por que razão através de semanas e meses… após Outubro tivemos uma chance de passar tão facilmente de triunfo em triunfo?”, perguntou no VII congresso do partido. “Apenas porque uma conjuntura internacional especialmente formada nos protegeu temporariamente do imperialismo”. Em Abril, Lenine disse numa sessão do Comité Executivo Central: “Tivemos uma pausa para respirar apenas porque a guerra imperialista ainda continuava no Ocidente, e no Extremo Oriente a rivalidade imperialista se intensificava cada vez mais; apenas isto explica a existência da República soviética”. (Janeiro e Abril de 1918)

Lenine: “Somos um dos destacamentos revolucionários da classe operária”, explicou em Abril de 1918, numa sessão do Soviete de Moscovo, “chegados antes à frente de combate não porque somos melhores que outros, mas precisamente porque somos um dos mais atrasados países do mundo… Só chegaremos a uma completa vitória juntamente com todos os trabalhadores dos outros países, os trabalhadores de todo o mundo”. (Abril de 1918)

 “Há dois caminhos na luta pela paz. Um caminho é opor aos governos aliados e inimigos a força moral e material da revolução. O outro é um bloco com Skobelev [menchevique ministro do Trabalho do governo provisório de Kerensky], que significa um bloco com Terechtchenko [ministro das Finanças do mesmo governo provisório] e a completa sujeição ao imperialismo aliado. Na nossa proclamação sobre a paz, dirigimo-nos simultaneamente aos governos e aos povos. Isto é uma simetria puramente formal. É claro, não pensamos em influenciar os governos imperialistas com as nossas proclamações, embora, enquanto eles existirem, não possamos ignorá-los. Colocamos toda a nossa esperança na possibilidade de a nossa revolução desencadear a revolução europeia. Se os povos em revolta na Europa não esmagarem o imperialismo, então nós seremos esmagados – isto é indubitável. Ou a Revolução Russa levantará o turbilhão da luta no Ocidente, ou os capitalistas de todos os países esmagarão a nossa revolução”…

As actas do Comité Central de 1917 e início de 1918 também oferecem um inestimável testemunho sobre esta questão. “Na sessão de 11 de Janeiro, o camarada Sergeiev (Artem) pontua que todos os oradores concordam sobre o facto de que a nossa república socialista está ameaçada com a destruição, no caso do fracasso de uma revolução socialista no Ocidente”. Sergeiev defendia a posição de Lenine – isto é, por assinar a paz. Ninguém contradisse Sergeiev. Todos os três grupos antagónicos discutiam apelando para uma mesma premissa geral: sem uma revolução mundial não poderemos seguir em frente.

Staline introduziu uma nota especial no debate. Baseava a necessidade de assinar uma paz separada sobre o facto de que “não há movimento revolucionário no Ocidente, não há factos, apenas uma potencialidade, e não podemos basear-nos em potencialidades”. Embora ainda longe da teoria do socialismo num só país, ele, não obstante, revela claramente nestas palavras a sua desconfiança do movimento internacional. Lenine argumentou então: “É verdade que a revolução no Ocidente ainda não começou”, disse. “Contudo, se em vista disto devemos alterar as nossas tácticas, então seremos traidores do socialismo internacional”. 

Se Lenine favoreceu uma paz separada imediata, não foi porque não acreditasse no movimento revolucionário no Ocidente, e ainda menos porque acreditasse na viabilidade de uma Revolução Russa isolada: “É importante para nós mantermo-nos até ao advento de uma revolução socialista geral, e só podemos conseguir isto assinando a paz”. O significado da capitulação de Brest foi resumido por Lenine pelas palavras “pausa para respirar”.

As actas testemunham que, após este alerta de Lenine, Staline procurou uma oportunidade para manifestar o seu apoio a Lenine. “Sessão de 28 de Fevereiro, 1918. Camarada Estaline:… Nós também estamos a apostar tudo numa revolução, mas você calcula-a em semanas, e (nós) em meses”. Staline aqui repete textualmente a fórmula de Lenine. A distância entre as duas alas do Comité Central sobre a questão da revolução mundial era a diferença entre semanas e meses.

(Anos mais tarde, sem referir que Trotsky apoiava a tese de Lenine quanto à necessidade do apoio de novas revoluções no Ocidente, Staline perguntava “Que significado pode ter a afirmação de Trotsky de que a Rússia revolucionária não poderia manter-se diante de uma Europa conservadora? Só pode ter um significado: Trotsky não sente a força interna de nossa revolução”.)

Lenine defendeu a assinatura da paz de Brest no VII congresso do partido, em Março de 1918: “É absolutamente verdade que, sem uma revolução alemã, iremos perecer. Pereceremos talvez não em Petersburgo nem em Moscovo, mas em Vladivostok, ou algum outro lugar remoto para onde teremos de nos retirar, mas de qualquer modo, sob todas as eventualidades possíveis ou concebíveis, se a revolução alemã não começar, iremos perecer”. Não era apenas uma questão da Alemanha, contudo. “O imperialismo internacional… que representa um gigantesco poder actual… não poderia em qualquer caso e sob nenhuma condição viver lado a lado com a República soviética. Aqui um conflito seria inevitável. Aqui… está o maior problema histórico… a necessidade de despertar uma revolução internacional”. Na decisão adoptada, lê-se: “O congresso só vê a garantia mais confiável da consolidação da revolução socialista na Rússia na sua conversão numa revolução operária internacional”.

No sétimo congresso do partido, Lenine disse: “Se a Rússia passar agora – e ela está indubitavelmente passando – de uma ‘Paz de Tilsit’ para um boom nacional… então o resultado deste boom não é uma transição para o Estado burguês, mas uma transição para a revolução socialista internacional”. Tal era a alternativa: ou uma revolução internacional ou um retorno ao capitalismo. Não havia lugar para o socialismo nacional. “Quantas etapas transicionais ainda haverá até ao socialismo, não sabemos e não podemos saber. Isto depende de quando a revolução socialista europeia começará numa escala real”. (Março 1918)

Em Abril do mesmo ano, quando apelou a uma reorganização das fileiras para o trabalho prático, Lenine escreveu: “Só podemos dar uma séria cooperação à revolução socialista no Ocidente, atrasada por vários anos, na medida em que conseguirmos resolver o problema organizativo que enfrentamos”. Esta primeira abordagem da construção económica está imediatamente incluída no esquema internacional: é uma questão de “cooperação com a revolução socialista no Ocidente”, e não de criar um domínio socialista auto-suficiente no Leste. (Abril 1918)

Sobre o tema da fome iminente, Lenine disse aos operários de Moscovo: “Em toda a nossa agitação devemos… explicar que o infortúnio que cai sobre nós é um infortúnio internacional, que não há outra saída a não ser a revolução internacional”. (Abril 1918)

Alguns dias depois, Lenine leu um relatório no Congresso dos Sovietes: “O imperialismo mundial e a marcha triunfal de uma revolução social não podem viver lado a lado”. Em 23 de Abril, disse numa sessão do soviete de Moscovo: “O nosso atraso empurrou-nos para diante, e iremos perecer se não pudermos manter-nos até encontrar um forte apoio por parte dos operários insurrectos de outros países”. (Abril 1918)

“A nova geração, embora mais desenvolvida, dificilmente fará a transição completa ao socialismo”, disse Lenine na sessão do Comité Executivo Central. (29 de Abril de 1918)

“Poderemos retirar-nos (ante o imperialismo) até para os Urais”, escreveu em Maio de 1918, “pois esta é a única chance de ganhar tempo para a maturação da revolução no Ocidente”. (Maio 1918)

 “Nós, o proletariado da Rússia, estamos à frente de qualquer Inglaterra ou Alemanha na nossa estrutura política”, escreveu em Maio de 1918, “e ao mesmo tempo atrás dos mais atrasados Estados europeus… quanto à nossa preparação para a inauguração material-produtiva do socialismo”. (Maio de 1918)

“A Alemanha e a Rússia encarnaram, em 1918, mais obviamente do que todas, a realização material das condições económico-produtivas e socioindustriais do socialismo de um lado, e as condições políticas de outro”. Lenine sugere assim que os vários elementos da futura sociedade estão repartidos entre diferentes países. É possível reuni-los e subordiná-los uns aos outros, se se derem uma série de revoluções nacionais. (Maio de 1918)

Na verdade, todo o partido era unânime na convicção de que, “ante uma Europa conservadora”, a República soviética não poderia manter-se. Mas também tinha a convicção de que uma Europa conservadora não poderia manter-se ante uma Rússia revolucionária. O poder internacional da Revolução Russa era inegável. De facto, a Europa conservadora não se manteve totalmente como dantes. A revolução alemã, mesmo traída pela social-democracia, ainda teve forças suficiente para enfrentar Ludendorff e Hoffmann [generais alemães reaccionários que na guerra provocaram derrotas militares ao governo Kerensky, o que levou os bolcheviques à tomada do poder e, assim, ao colapso da resistência russa e, em Março de 1918, ao Tratado de Brest-Litovski, que pôs termo à guerra e à ameaça alemã]. Sem esta operação, a República soviética dificilmente poderia ter evitado a destruição.

Discurso de Lenine:­ “A Revolução Russa”, disse em 4 de Junho de 1918, “deveu-se não a méritos especiais do proletariado russo, mas ao curso… dos eventos históricos, e este proletariado foi posto temporariamente na primeira posição pela vontade da História e feito por um tempo a vanguarda da revolução mundial”. 

“O primordial papel ocupado pelo proletariado da Rússia no movimento operário mundial”, disse Lenine numa conferência de Comités de Fábrica em 23 de julho de 1918, “é explicado não pelo desenvolvimento industrial do país – é justamente o contrário, pelo atraso da Rússia… O proletariado russo está claramente alerta de que a condição necessária e premissa fundamental das suas vitórias é a ação unida dos operários de todo o mundo, ou de vários países avançados nas relações capitalistas”. (Junho de 1918)

“Os nossos esforços levarão inevitavelmente à revolução mundial”, disse Lenine numa sessão do Comité Executivo Central no final de julho de 1918. “As coisas deram-se de tal modo que, tendo saído da guerra com uma aliança, imediatamente experimentámos o ataque do imperialismo do outro lado”. (Julho de 1918)

Em Agosto, quando a guerra civil se espalhava sobre o Volga com a participação dos checoslovacos, Lenine disse num comício em Moscovo: “A nossa revolução começou como uma revolução universal… As massas proletárias garantirão à República soviética uma vitória sobre os checoslovacos e a possibilidade de nos mantermos até ao irromper da revolução socialista mundial”. (Julho de 1918)

Naqueles mesmos dias, Lenine escreveu aos operários norte-americanos: “Estamos numa fortaleza sitiada, a menos que outros exércitos da revolução socialista internacional venham em nossa ajuda”. Expressou-se ainda mais categoricamente em Novembro: “Os factos da história mundial mostram que a conversão de nossa revolução mundial numa revolução socialista não foi uma aventura, mas uma necessidade, pois não havia outra escolha. O imperialismo anglo-francês e americano inevitavelmente estrangularão a independência e a liberdade da Rússia, a menos que uma revolução socialista mundial, a menos que o bolchevismo mundial, vença”. (Novembro de 1918)

A “Declaração dos Direitos dos Trabalhadores e dos Povos Explorados” – programa estatal básico apresentado em nome do poder soviético na Assembleia Constituinte – proclamou ser a tarefa da nova estrutura “o estabelecimento de uma organização socialista da sociedade e a vitória do socialismo em todos os países… O poder soviético procederá resolutamente ao longo desta linha até a vitória completa da insurreição internacional dos trabalhadores contra o jugo do capital”. 

Rosa Luxemburgo escreveu sobre a linha geral do partido bolchevique: “O facto de os bolcheviques na sua política terem guiado o seu curso inteiramente rumo à revolução mundial do proletariado é precisamente o testemunho mais brilhante da sua perspicácia política, a sua firmeza de princípios e o alcance audacioso da sua política”.

O Congresso dos Conselhos de Economia Popular, em Dezembro de 1918, formulou o plano da construção socialista nas seguintes palavras: “A ditadura do proletariado mundial está a tornar- se historicamente inevitável… Isto está a determinar o desenvolvimento de toda a sociedade mundial e de cada país em particular. O estabelecimento da ditadura do proletariado e da forma soviética de governo noutros países possibilitará a inauguração das mais estreitas relações económicas entre os países, uma divisão internacional do trabalho na produção, e finalmente a organização de órgãos económicos internacionais de administração”. (Dezembro de 1918)

No ABC do Comunismo, cartilha do partido escrita por Bukharine e Preobrajensky, que teve grande número de edições, lia-se: “A revolução comunista só pode ser vitoriosa como revolução mundial… Numa situação em que os operários venceram apenas num só país, a construção económica torna-se muito difícil… Para a vitória do comunismo, é necessária a vitória da revolução mundial”.

No espírito destas mesmas ideias, Bukharine escreveu numa brochura popular, reimpressa muitas vezes pelo partido e traduzida para línguas estrangeiras: “Surgem para o proletariado russo mais agudamente que nunca os problemas da revolução internacional… A revolução permanente na Rússia insere-se numa revolução europeia do proletariado”.

Num livro muito divulgado da autoria de Stepanov-Skvortsov, intitulado Eletrificação, lançado sob a responsabilidade editorial de Lenine e com uma introdução sua, num capítulo, o editor recomenda com especial entusiasmo a atenção do leitor e diz: “O proletariado da Rússia nunca pensou em criar um Estado socialista isolado. Um Estado ‘socialista’ auto-suficiente é um ideal pequeno-burguês. Um certo vislumbre disto é concebível com uma predominância económica e política da pequena burguesia; isolado do mundo exterior, tal Estado procura um meio de consolidar as suas formas económicas, que são convertidas pela nova técnica e pela nova economia em formas muito instáveis”. 

“Para o mais atrasado país que foi obrigado, como resultado dos ziguezagues da História, a iniciar a revolução socialista”, disse Lenine em Março de 1918, “o mais difícil para ele será a transição das velhas relações capitalistas para as socialistas”. (Março de 1918)

 “Para nós foi fácil iniciar uma revolução, e difícil continuá-la”, disse em Maio do mesmo ano. “No Ocidente, será mais difícil começar uma revolução, mas será mais fácil continuá-la”. (Maio de 1918)

“Nem por um minuto esquecemos, nem esqueceremos, a fraqueza da classe operária russa em comparação com outros destacamentos do proletariado internacional… mas devemos continuar nos nossos postos até a chegada dos nossos aliados, o proletariado internacional”, disse em 14 de maio de 1918, numa sessão do Comité Executivo Central (Maio de 1918)

Num congresso dos Conselhos de Economia Popular afirmou Lenine em 26 de Maio de 1918: “Não fechamos os olhos ao facto de que nós sozinhos, com as nossas próprias forças, não poderemos conseguir a revolução socialista num só país, mesmo que ele fosse bem menos atrasado do que a Rússia. Isto não nos deve causar uma só gota de pessimismo, porque a tarefa que fixamos para nós mesmos é uma tarefa de dificuldade histórica mundial”. (Maio de 1918)

No VI Congresso dos Sovietes, em 8 de Novembro de 1918, ele disse: “A completa vitória da revolução socialista é impensável num só país, mas exige a cooperação mais activa, pelo menos de vários países avançados, entre os quais a Rússia não pode ser incluída…”. Aqui Lenine não só nega à Rússia o direito a um socialismo próprio, mas dá-lhe um lugar secundário na construção do socialismo por outros países.

Em Dezembro, discursando perante uma audiência camponesa, Lenine desenvolveu o mesmo pensamento: “Lá (no Ocidente) a transição para uma economia socialista… será mais rápida e será conseguida mais facilmente do que nós… Em união com o proletariado socialista de todo o mundo, o campesinato trabalhador russo irá superar todos os obstáculos”. (Dezembro de 1918) 

Num congresso do partido, disse: “Temos uma experiência prática em tomar os primeiros passos na destruição do capitalismo num país com uma relação especial entre proletariado e campesinato. Nada mais. Se nos incharmos como um sapo, e ofegarmos e bufarmos, será totalmente risível para toda a gente. Seremos meros fanfarrões”. (Março de 1919)

No seu relatório ao oitavo congresso do partido, Lenine declara de novo: “Não vivemos apenas num Estado, mas num sistema de Estados, e a existência da República soviética lado a lado com os Estados imperialistas por um período extenso é inconcebível. No fim, um ou outro irá vencer”. (Março de 1919)

Lenine lembrou: “Na época da paz de Brest… o poder soviético colocou a ditadura mundial do proletariado e da revolução mundial acima do que quaisquer sacrifícios nacionais, por mais pesados que fossem”. (1919)

 “Em comparação com os países avançados”, repete em 1919, “foi mais fácil para os russos iniciar a grande revolução proletária, mas será mais difícil para eles continuá-la e levá-la adiante através de uma decisiva vitória no sentido da organização completa de uma sociedade socialista”. (1919) 

Em janeiro de 1919, no auge do comunismo de guerra, Lenine disse: “Defenderemos as bases de nossa política comunista na produção, e iremos levá-la com mão firme até a vitória completa e mundial do comunismo”. 

“Para a Rússia”, Lenine insistia de novo em 27 de Abril de 1920, “…foi fácil iniciar a revolução socialista, enquanto continuá-la e levá-la até ao fim será mais difícil para a Rússia do que para os países europeus. Eu tive de chamar a atenção para esta circunstância no início de 1918, e os dois anos de experiência desde então confirmaram totalmente este julgamento”. (Abril de 1920)

“Não podemos introduzir agora uma ordem socialista. Oxalá que no tempo dos nossos filhos, ou talvez dos nossos netos, ela seja estabelecida aqui”. (1920)

Disse em 1920: “Agora passamos da guerra à paz [de Brest-Litovski]” “Mas não nos esqueçamos de que a guerra virá novamente. Enquanto o capitalismo e o socialismo permanecerem, não podemos viver em paz. Um ou outro, a longo prazo, irá vencer. Então haverá um réquiem ou para a República soviética ou para o capitalismo mundial. O actual período é uma moratória numa guerra”. A paz de Brest-Litovski tinha sido assinada em Março de 1918, permitindo aos revolucionários russos “uma pausa para respirar”; porém essa excepcional circunstância não podia durar para sempre.

A transformação da “pausa para respirar” num período de equilíbrio algo instável foi possível não apenas pela evolução da luta dos grupos capitalistas, mas também pelo movimento revolucionário internacional. Como resultado na revolução de Novembro na Alemanha, as tropas alemãs foram obrigadas a abandonar a Ucrânia, os Estados Bálticos e a Finlândia. A penetração do espírito da revolta nos exércitos da Entente, influenciados pela revolução russa, obrigou os governos francês, inglês e norte-americano a retirar as suas tropas dos litorais meridional e setentrional da Rússia. A revolução proletária no Ocidente não foi vitoriosa, mas, não obstante as suas limitações, protegeu o Estado soviético por vários anos. (1920)

Nas suas teses sobre as questões nacionais e coloniais no II Congresso da Internacional Comunista, Lenine define a tarefa geral do socialismo como “a criação de uma economia mundial unida, regulada segundo um plano geral pelo proletariado de todas as nações, como um todo. Esta tendência já está a revelar-se com absoluta clareza sob o capitalismo, e receberá sem dúvida um desenvolvimento posterior e a total realização sob o socialismo”. (Agosto de 1920)

No terceiro aniversário da Revolução de Outubro, Lenine confirmou isto: “Sempre apostámos numa revolução internacional e isto era incondicionalmente certo… Sempre enfatizámos o facto de que num só país é impossível realizar um trabalho tal como uma revolução socialista”. (1920)

Em Novembro de 1920, numa conferência provincial de Moscovo do partido, Lenine lembra  de novo à sua audiência que os bolcheviques nunca prometeram ou sonharam “construir todo o mundo com as forças da Rússia apenas… A tal loucura nunca chegámos, mas sempre dissemos que a nossa revolução vencerá quando os operários de todos os países a apoiarem”. (Novembro de 1920)

“Enquanto a nossa Rússia soviética continuar a ser um subúrbio solitário de todo o mundo capitalista”, disse em Dezembro de 1920, no VIII Congresso dos Sovietes, “durante este tempo pensar na nossa completa independência económica… seria uma fantasia totalmente ridícula, e utopia”. (Dezembro de 1920)

Num congresso das Comunas Agrícolas, ele evocou uma data ainda mais remota: “Não podemos introduzir agora uma ordem socialista. Queira a providência que no tempo dos nossos filhos, ou talvez dos nossos netos, seja ela estabelecida aqui”. (1921)

Em 27 de Março de 1922, no XI Congresso do Partido, Lenine alertou: Nós enfrentamos “um teste que está a ser preparado pelo mercado russo e mundial, ao qual estamos subordinados, com o qual estamos ligados, com o qual não podemos romper. Este é um sério teste, pois aqui eles podem derrotar-nos económica e politicamente”.

Lenine afirmou então: “Temos de satisfazer economicamente o camponês médio, e adoptar a liberdade de comércio. De outro modo será impossível preservar o poder do proletariado na Rússia em vista do atraso da revolução internacional”. 

“Dez a vinte anos de relações correctas com o campesinato e a vitória à escala mundial estão garantidas (mesmo com o atraso das revoluções proletárias, que estão a crescer)”. É clara a correlação que estabelece entre as condições internas e as internacionais. Lenine estava confiante em que, graças a novas insurreições, “Da Rússia da NEP surgirá uma Rússia socialista”. Só que, na ausência da revolução internacional, a transição para a NEP foi acompanhada por uma ruptura da ligação entre os problemas internos e internacionais.

“Nos países de capitalismo desenvolvido”, disse Lenine no X Congresso do Partido, explicando a posição histórica da NEP, “há uma classe de trabalhadores assalariados agrícolas que se formou no curso de décadas… Onde esta classe está suficientemente desenvolvida, a transição do capitalismo para o socialismo é possível. Nós temos enfatizado – numa série de escritos, em todos os nossos discursos, em toda a nossa imprensa – o facto de que na Rússia a situação não é esta – que na Rússia temos uma minoria de trabalhadores na indústria e uma enorme maioria de pequenos donos de terras. Num país assim, a revolução social só pode conseguir o seu sucesso final sob duas condições: primeiro, com a condição de um apoio oportuno por parte de uma revolução social num ou vários países avançados… A outra condição é um acordo entre… o proletariado que mantém o poder estatal e a maioria da população camponesa… Apenas um acordo com os camponeses pode salvar a revolução socialista na Rússia até começar a revolução noutros países”. (1921)

Lenine declarou num congresso de operários da indústria de agulhas: “Sempre e repetidamente fizemos ver aos operários que a principal tarefa subjacente e a condição básica de nossa vitória é a propagação da revolução em pelo menos vários dos países mais avançados”. (Fevereiro de 1921)

No terceiro aniversário da revolução, que coincidiu com derrota dos Brancos, Lenine lembrou e generalizou: “Se naquela noite (a noite da Revolução de Outubro), alguém nos tivesse dito que em três anos… isto seria a nossa vitória, ninguém, nem mesmo o mais seguro optimista, teria acreditado. Entendíamos então que a nossa vitória só seria uma vitória quando a nossa causa conquistasse o mundo inteiro, por isto começámos o nosso trabalho contando exclusivamente com a revolução mundial”. (Março 1921)

Em 19 de Maio de 1921, Lenine exclamou: “Nenhum dos bolcheviques em qualquer época negou que a revolução só pode vencer, numa forma final, quando abarcar, todos ou pelo menos vários dos mais avançados países!”. (Maio de 1921)

Dirá, em Junho de 1921: “A república socialista pode subsistir no interior do cerco capitalista, mas não por muito tempo, evidentemente”. (Junho de 1921)

Lenine deu uma estimativa geral da nova etapa então aberta nas suas teses para o III Congresso da Internacional Comunista: “Do ponto de vista da revolução proletária mundial como um único processo, o significado da época que a Rússia está a viver reside no seu teste experimental prático da política em relação à massa pequeno-burguesa de um proletariado que mantém o poder do Estado”. (Julho de 1921) 

Em julho de 1921, Lenine resumiu a situação: “Obtivemos um certo equilíbrio, embora extremamente frágil, extremamente instável, mas apesar de tudo um equilíbrio em que uma república socialista possa existir – é claro que não por muito tempo – num ambiente capitalista”. (1921)

Em Fevereiro de 1922, no seu último discurso público, dirá de novo: “Sempre proclamámos e repetimos a seguinte verdade elementar do marxismo: que a vitória do socialismo exige a totalidade dos esforços de alguns países desenvolvidos”. “Estamos sós: isto é o que nos temos dito a nós mesmos. Estais sós: quase todos os Estados capitalistas no-lo repetiram a propósito de não importa que assunto tratado com eles. É aí que reside a dificuldade essencial, é preciso darmo-nos conta disso.” (Fevereiro de 1922)

Lenine, até à sua morte, não só nunca admitiu ou verbalizou a possibilidade do “socialismo num só país”, como nunca acreditou nessa possibilidade como forma de transição para o socialismo. Nem por um momento renunciou à doutrina do caráter internacional da revolução socialista, ou à ideia de que a transferência para o caminho socialista só poderia ser realizada na Rússia atrasada com a cooperação directa do Ocidente. 

Esta fórmula segundo a qual um destino posterior da revolução como revolução socialista será determinado pela vitória do proletariado nos países avançados nunca foi contestada por ninguém enquanto Lenine foi vivo. Era, pelo contrário, o pressuposto de todas as discussões, como proposição reconhecida por todos.

Para Lenine, a construção socialista estava intimamente ligada à conjuntura internacional: a questão era, como disse em Abril 1918, de “cooperação com a revolução socialista no Ocidente”, e não de criar um sistema socialista auto-suficiente na Rússia. “Não fechamos os olhos ao facto de que apenas nós, com as nossas próprias forças, não poderemos conseguir a revolução socialista num só país, mesmo que ele fosse bem menos atrasado do que a Rússia”, disse.

A transição que Lenine julgava possível seria uma transição para a revolução socialista internacional, sem alternativa, isto é: ou uma revolução internacional ou um retorno ao capitalismo. Nunca fez menção a um socialismo de tipo nacional. E perguntou: “Quantas etapas transicionais ainda haverá até ao socialismo, não sabemos e não podemos saber. Isto depende de quando a revolução socialista europeia começará numa escala real”. 

Assim, há que reconhecer que todo o aparato ideológico que se criou sobre a possibilidade desta transição para o socialismo em termos nacionais, num só país, teve origem no período stalinista e não se baseou em nenhuma ideia anteriormente expressa por Lenine nesse sentido. Pelo contrário, essa teoria acabou por renegar os princípios que Lenine desenvolvia dia a dia, que em vida sua eram publicados no órgão central do partido sob a direção de Staline, que Rosa Luxemburgo considerava serem o mais alto testemunho da perspicácia política dos bolcheviques e que, finalmente acabaram condenados pela Internacional Comunista em 1926, sob o labéu infamante de desvio trotskista. “As opiniões de Trotsky e os seus seguidores sobre a questão fundamental do carácter e perspectiva de nossa revolução”, diz uma resolução do VII Plenário da Internacional Comunista, “não têm nada em comum com as opiniões de nosso partido, com o leninismo”. (Internacional Comunista, 1926)

SOBRE O CAPITALISMO DE ESTADO

 “É uma situação sem precedentes na história: o proletariado, a vanguarda revolucionária, possui um poder político mais que suficiente; e, a seu lado, está o capitalismo de Estado (…).

Um ano se passou nesta situação, e o estado está nas nossas mãos. Pois bem, podemos dizer que no plano da Nova Política Económica, o Estado funciona como pretendíamos? Não. Embora não o queiramos confessar, a verdade é que  o estado não funcionou como desejávamos. E como funciona então?

O carro não nos obedece. Há de facto um homem ao volante, que parece dirigir, mas o carro não avança na direção estabelecida. É impelido por uma outra força – força ilegal e ilícita, que ninguém sabe de onde vem, talvez dos especuladores, talvez dos capitalistas privados, talvez de uns e outros – mas o certo é que o carro não responde às intenções de quem o guia.

Este é o ponto essencial a ter presente quando tratamos do capitalismo de estado. Nesta questão fundamental, devemos aprender tudo desde o começo. Só se assimilarmos esta verdade poderemos garantir o êxito da nossa aprendizagem”. (Lenine, XI Congresso do PC(b)R, 1922, Obras, tomo 33, pág. 284)

Morto Lenine, derrotadas as insurrecções proletárias na Europa, ainda por eclodir as tentativas insurreccionais na Ásia, vendo-se a União Soviética isolada, pode-se até compreender que os dirigentes russos da época se tenham visto impelidos a construir a teoria do socialismo num só país e transfigurado o capitalismo de estado em transição para o socialismo como forma de justificaram a sua política e insuflarem ânimo aos seus militantes, aos seus povos e aos restantes adeptos da revolução russa pelo mundo fora. O que não se pode deixar de reconhecer hoje é que: 1º essa circunstância abriu um novo rumo orientador que pôs de lado a tese leninista segundo a qual o regime soviético não poderia sobreviver se não surgissem em breve outras revoluções proletárias; 2º o capitalismo de Estado – tal como Lenine o definiu e sofrendo ao longo do tempo várias mutações – persistiu por todo o período histórico que vai desde os finais dos anos 20 até ao fim da União Soviética em 1991, não tendo havido portanto transição para o socialismo.

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NOTA FINAL – As citações abarcam um período de tempo que vai desde 1905, ano da primeira revolução russa derrotada, até Fevereiro de 1922, data do seu último discurso público, e foram recolhidas nas Obras de Lenine, nos livros O último combate de Lenine de Moshe Lewin, em A internacional comunista de Dominique Desanti e na História da Revolução Russa de Trotsky.

Janeiro de 2022

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