Abril e “piedosas intenções”


António Barata

Este ano, em que se comemoram os 49 anos do derrube do fascismo pelo movimento dos capitães, os portugueses, os partidos e os movimentos políticos e as organizações populares e cívicas estão a ser convidadas pela Comissão Promotora das Comemorações Populares do 25 de Abril para participar no tradicional desfile. Até aqui nada de novo. A novidade está em que este ano a Comissão Promotora foi substancialmente alargada e, no seu apelo, integrou as reivindicações dos colectivos e das pessoas que integraram a grande manifestação de 1 de Abril promovida pelo colectivo Casas para Viver. O que é de saudar.

Mas há um senão.

Passando ao lado do tom pomposo que abre o apelo, onde se lembra o “heróico levantamento militar do Movimento das Forças Armadas”, e indo à sua substância, nele diz-se que há “que continuar a lutar para cumprir Abril porque cumprir Abril é garantir  que todos os portugueses tenham acesso a pensões, reformas e salários dignos, à  saúde, educação, cultura, habitação porque, como diz o poeta, sem isso não há liberdade a sério. Cumprir Abril é contribuir para a construção de uma sociedade em que se possa viver com dignidade, num meio ambiente amigo da natureza, em que  a Paz, o diálogo e a cooperação entre as Nações e os Povos sejam uma realidade.”

Colocar as coisas nestes termos pode ser “abrangente”, mas não é mais que repetir a velha ladainha mistificadora sobre a conquista das “liberdades e garantias, direitos políticos, económicos, sociais e culturais, afirmou-se a soberania e independência nacionais – princípios, direitos e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa.” E não é o facto de depois se enumerarem as reivindicações que fariam “cumprir Abril” – a saber: defender e reforçar o Serviço Nacional de Saúde, investir na Educação e na Cultura, garantir o direito à habitação, combater a pobreza e o agravamento das desigualdades sociais, combater as alterações climáticas, garantir o direito de acesso à Justiça, lutar pela paz e combater o racismo e a xenofobia crescentes na nossa sociedade – que faz com que este apelo seja tão inócuo e inútil como os anteriores. Ou seja, um conjunto de palavras bonitas e consensuais, agora com uns tons de “populares e de esquerda”.

O problema não está nas reivindicações, que são justas, mas numa omissão que as transforma em retórica e nos põe a celebrar a vitória da burguesia democrática sobre a burguesia fascista, como se o regime em que vivemos há 48 anos não resultasse do golpe reacionário do 25 de Novembro de 1975, que terminou com a crise revolucionária de 1974/75, permitindo à burguesia democrática conter o movimento popular no quadro do sistema capitalista e restaurar a sua ordem jurídica e política.

Razão pela qual não deveria ser omisso que “cumprir Abril” (isto para usar a terminologia dos autores do apelo) não é irmanar os que estiveram do lado do movimento popular e revolucionário com os que o combateram. É trabalhar para derrubar o poder instaurado pelo golpe reacionário de 25 de Novembro, aquele que triunfou e liquidou o movimento popular e revolucionário, e que nos tem governado desde então. É não apagar da memória colectiva a iniciativa dos milhares de pobres, de trabalhadores, de operários e camponeses, de homens e mulheres, que não obedeceram aos apelos do MFA para que ficassem em casa e inundaram as ruas caçando pides e exigindo o fim da polícia política (que o general Spínola queria manter), a prisão e julgamento de pides e bufos e a libertação de todos os presos políticos (e não só de alguns como era vontade de Spínola). E que depois começaram a ocupar as casas devolutas gritando que “as casas são do povo!”, “casas sim, barracas não!” e “nem gente sem casa, nem casas sem gente!”, e também as terras dos grandes agrários onde sempre trabalharam, dando início à reforma agrária; a sanear fascistas e bufos das empresas e repartições, a exigir o fim da guerra colonial e a impedir os soldados de embarcar (“nem mais um soldado para a colónias!”), que tomaram nas suas mãos a gestão das empresas abandonadas pelos patrões, e que sem perguntar nada a ninguém nem esperar ordens se meteram a construir casas e esgotos, a levar a água e a electricidade onde não a havia, a ciar creches e postos médicos nos bairros pobres, a alfabetizar-se, a levar a cultura, a música, o cinema e o teatro a fábricas, bairros e aldeias, etc. Um movimento que contaminou os quartéis, onde os soldados começaram a questionar a hierarquia militar e a desobedecer, deixando a burguesia sem os meios de repressão necessários para se fazer obedecer.

Certamente que falar e defender a democracia do trabalho, de base, que animava, estruturava e dava força e capacidade de mobilização a esse movimento popular e revolucionário organizado em Comissões de Moradores, de Trabalhadores, de Soldados e Marinheiros, choca de frente com a democracia representativa, parlamentar, da burguesia.

Muitos dirão que este é um discurso do passado, fossilizado, que divide e obriga a fazer escolhas – incapazes de perceber que estão a servir de parvos uteis à burguesia e ao capital, só resta dizer que Nossa Senhora de Fátima os guarde.

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